segunda-feira, junho 26

No sábado, depois do almoço

(Clique)
 
Se lhe viessem dizer que tinha acontecido a outro, por exemplo ao Sebastião da garagem, porque a mulher andou no psiquiatra e esteve uns tempos internada, iria acreditar. Ou com a Amélia do Bexiga, que essa, às vezes por uma coisa de nada perde a cabeça e ninguém a aguenta. Agora a Lucinda? Em trinta e sete anos de casados, se fosse a contar teriam tido no máximo três, quatro zangas, e mesmo que procurasse seria incapaz de dizer porque tinha sido.
Nunca foi homem de medos, ou de se pôr a magicar, mas verdade é que desde então, sem querer, como se temesse uma ameaça, olha-a de lado. Também não gosta de ver a maneira como ela ultimamente arranja as pescadinhas ou as fanecas sobre a tábua, na banca da cozinha, e de um golpe lhes corta as cabeças.

A Francisca e o genro tinham avisado que não poderiam vir, o Chiquinho estava com febre, receavam que fosse sarampo, então ficava para a outra semana.
Por isso, nesse sábado, tinha sido o almoço de costume quando estavam sós: caldo verde, bifes de cebolada, arroz doce para ela, para ele uma laranja, porque anda  preocupado com os diabetes e o colesterol. Depois uma banana, "pra tapar o buraco".
Falavam pouco, olhavam desinteressados para a televisão, um programa qualquer, daqueles americanos com riso enlatado, uma história sem pés nem cabeça, uma sogra e um genro, ambos polícias, que se davam mal com a vizinha, uma cabeleireira amigada com o dono de um restaurante. Depois, sem uma palavra, arrumaram a loiça na máquina, ele acendeu um cigarro e, hábito de sempre, saíram para um cafezito no "Bernardo".

Dormiram a sesta. Cumpriram o ritual de um chá com bolachas, ela disse que ficava na sala, porque queria ver outra vez o programa da bicharada em África, ele foi para o quintal a podar os rebentos da oliveira.
Tinha a impressão de que estava ali há coisa de meia hora, quando a viu apressada a descer as escadas, direita a ele. Mal disposta, pelos jeitos.
- Ouve lá, também deitas a língua de fora nas minhas costas?
- O que é que te deu?
- Como o gajo na têvê? Puseste-te a rir, mas digo-te uma coisa...
- Não dizes nada. Cala o bico.
Ia baixar-se a apanhar os galhos, mas parou ao vê-la aproximar-se, desfigurada, a boca torcida num ricto de demência.
Frente a frente, ele segurando a tesoura, ela com as mãos escondidas sob o avental. Ficaram assim um longo momento, até que, resmungando qualquer  coisa, ela lhe virou as costas e desapareceu na cozinha.
Começara a anoitecer quando a ouviu gritar que a ceia estava pronta.
...
Publicado na DOMINGO CM.

quarta-feira, junho 21

Paneleirices

 
(Clique)

Parabéns aos CTT: sem localidade e o código postal errado chegou ao destinatário.

segunda-feira, junho 19

Ela, ele, os camelos e o guia

(Clique)
Agosto de 1999, o século a findar. Havia dinheiro, paz no Oriente, podia-se descobrir o mundo. Os diapositivos eram já passado, o telemóvel uma novidade, a câmara digital o progresso.
Tinham estado no Líbano, no Dubai, na Síria, na Jordânia. Bronzeados. Sorridentes. Contando em uníssono que, tirante o calor, tudo tinha corrido à  perfeição. Ó que gente simpática! Então nos restaurantes, cada pratada, aqueles shish kebab! Comia-se com os dedos. Paisagens maravilhosas, únicas. Vocês conhecem Petra? Não? Um sonho! Ao ver aquilo...
A Nikon último modelo passa de mão em mão. Não carregues nesse, carrega  aqui. Aqui? Não! No outro. Esse é de andar para trás. Vira pra este lado. Agora carrega. Isso mesmo.
Fotos do aeroporto. Fotos de nuvens. Do interior do avião. Das hospedeiras. Uma rua de Damasco vista do táxi. Parece que em árabe se diz Dimashq. Umas vezes dizíamos Damasco, ou então Damascus, mas deu sempre certo.
Ela, avantajada, decotada e de calções, defronte de uma loja de tapetes e outra de narguilés. Ele, corpulento e de calções, numa esplanada, os joelhos em primeiro plano. O hotel. O porteiro, de cartola, galões e alamares. O hall do hotel. O quarto do hotel. A paisagem vista do quarto do hotel.
Cenas idênticas em Beirute. Tudo tão moderno! A gente não esperava. Julgávamos… Ele a acenar num camelo. Ela escarranchada num jerico. Ele em Petra. Ela em Petra. Ele diante de um edifício escavado na rocha. Ela diante do mesmo. Eles fotografados pelo guia a apontar para uma ruína. Eles fotografados pelo guia com um casal alemão. Retrato do guia. Velhote simpático. Disse que ia fazer setenta, mas era capaz de ter mais. A pobreza é muita, as pessoas trabalham enquanto podem. Achámos graça que há lá lojas com o nome de Indiana Jones! Souvenirs e até sandes Indiana Jones. Este era o chofer do autocarro. Sempre azedo e ainda por cima mal educado. Estátuas. Uma caverna. Outro autocarro. Uma charrete. Engraçado, não é, vocês estão a ver o burro enfeitado? Camelos. Polícias. Mais autocarros. Um grupo de turistas. Camelos com turistas. Taxistas a fumar. Ruínas. Rochas. Mais camelos. Uma barraca de fruta. Mais uma. Quatro mulheres de burka. Tenho a certeza que não trazem nada por baixo, porque aquilo é um calor! Vocês nem imaginam. Uma garota pedindo esmola. Ela dizia bakshish, bakshish, e o guia explicou. Alguém  adivinha quanto custa lá uma garrafa de água? Dois dólares e meio! Na moeda deles ainda é mais caro. Empancou? Tens de mudar o cartão.
...
Publicado na DOMINGO CM

segunda-feira, junho 12

Os pobres do Alçada

(Clique)

Se há assunto que sobremodo me põe a olhar vesgo, é a ternura que os bem na vida  demonstram pelos pobrezinhos. Não tanto pela vontade ou intento que badalam de ajudar, serem caridosos e terem pena, antes pela ideia que me dão de que para eles, mau grado a aparência de gente de carne e osso, os pobres não pertencem exactamente ao mesmo género de humanidade, antes parecem fazer parte de um amontoado de seres incapazes, ou desinteressados de encontrar um lugar ao sol. Além do nojo que lhes causam com as suas chagas e andrajos, importunando quem passa.
Não vá o leitor agora, apressadamente, ter ideia de que eu sou um desses espíritos atormentados que desesperam com a ineficácia da luta de classes e sonham amanhãs impossíveis. Não sou. E por estranho que pareça, o facto de que as origens, o local do meu nascimento e as circunstâncias, me tenham desde o berço feito lidar com pobres, também não contribuiu para suavizar as minhas opiniões.
Há pobres de que lamento o destino e procuro ajudar como posso; há pobres que me incomodam; há-os de quem fujo, tão grande é a aversão que me causa a visível malandrice e o explorar das suas mazelas.
Sou de um tempo em que na nossa aldeia transmontana os mendigos apareciam com uma curiosa regularidade, a ponto que às vezes se estranhava andarem atrasados, e se perguntava ao vizinho se por acaso este ou aquele pedinte já tinha aparecido para receber a esmola.
Não exagero se disser que nas aldeias havia para com esses  pobres, não somente caridade, procurando confortar-lhes a miséria, mas se usava a esmola como uma forma de exorcismo, para eventualmente afastar a má sorte de que nos pudesse acontecer a mesma desgraça.
A respeito de pobres, encontrei uma vez, no fim dos anos 90, uma situação bem estranha durante uma reportagem que fiz em Las Hurdes, então uma das regiões mais pobres de Espanha. Em povoações inteiras as pessoas e os animais viviam juntos em casebres miseráveis, por vezes apenas um mal tapado buraco entre rochas, com um tecto de bocados de lousa.
De um velho e caridoso médico ouvi aí a estranha revelação de que o ser mendigo era, em Las Hurdes a profissão mais respeitada e proveitosa. Percorriam a Espanha inteira e, recebendo muitas esmolas, eram os favoritos das raparigas casadoiras.
Já agora, que falamos de pobreza, contou-me o saudoso António Alçada Baptista que, era ele rapaz, um dia o correio bateu à porta para entregar lista telefónica.
- Que se faz à velha? – perguntou ele à mãe.
- Dá-se a um pobre.
...
Publicado na DOMINGO CM.