domingo, março 31

O fedor da estrumeira

 

Para seu espanto e nojo, um fidalgo da corte de Lisboa parece ter-se dado conta de que, tal uma estrumeira a céu aberto, para lá do Príncipe Real e das Avenidas Novas o ambiente começa a feder.

Ainda bem que, segundo ele, não é grande o perigo nem urgente a ameaça, pois são nossos, e de massa mole, os “deploráveis” que a compõem. De facto, mesmo um espírito destrambelhado hesitaria imaginá-los brutos à americana, capazes de aos gritos e mocas na mão, tomarem de assalto o Palácio de São Bento.

Casos desses passam-se lá fora, em circunstâncias que por serem estranhas pouco nos impressionam, achamos remota a eventualidade de que o mesmo possa acontecer entre nós. Além do mais, nenhum presumível líder de raiz lusitana seria capaz de soltar os berros, e ainda menos exibir a espectacular ferocidade, que se tornou como que a marca registada do ex e provável futuro morador da Casa Branca.

De modo que para já durma o fidalgo sossegado, pois se porventura mudança houver – o futuro a Deus pertence – o mais provável é que seja à consagrada maneira lusitana. Recorde-se que fomos únicos, e ganhámos fama mundial, conseguindo numa noite e meio dia, revirar o sistema que quarenta e sete anos nos tiranizara. Isso sem derrame de sangue, alegremente agitando cravos, memória que perdura e em breve iremos festejar.

Dadas pois as circunstâncias, e levando em conta a nossa tradicional pachorra, é improvável que para já  o fedor da estrumeira alastre sobre a capital e o país. Previsível é que o futuro governo – outras caras, a mesma quadrilha – obrigue os que ainda têm cinto a apertá-lo mais um furo, e lhes roube o que precisa, para com migalhas maiores acalmar os “deploráveis”.

Então sim, então talvez a estrumeira aqueça dum modo que não se lhe aguente o fedor.

 

quinta-feira, março 28

Carta para iletrados

 

Carta aberta que ficará fechada, porque os destinatários não sabem ler nem querem aprender. AQUI

domingo, março 24

A loja dos 300

 

Podia ser noutra, que ocasiões não têm faltado, mas a desfaçatez do senhor, pesaroso e contrito a afirmar na entrevista: “A nossa geração falhou”, pôs-me mais avesso do que de costume. Porque a sua geração, a dos que têm agora entre setenta e oitenta anos, sabe-o ele, sabemo-lo todos, é de longe e fora de dúvida, a mais bem sucedida em se apoderar do país, e manter para seu exclusivo benefício a ocupação do aparelho do Estado.

Listar nomes é supérfluo, todos os conhecemos. Aliás, eles próprios cuidam de chamar a atenção sobre as suas pessoas, o nobreza dos seus princípios, o espírito de sacrifício com que há cinquenta anos se dedicam à governança.

Dormem descansados, certos e seguros de que não será em futuro previsível que iremos incomodá-los, nem mais longe do que lhes apontar o dedo, pois melhor do que ninguém conhecem eles os engodos e tretas que mantêm o rebanho em secular mansidão.

 

Portugal tem grandes médicos, grandes arquitectos, cientistas notáves, excelentes engenheiros, empresários e industriais competentes, não lhe faltam artesãos, sobra nele gente capaz e dedicada no seu trabalho. Tem também banqueiros de boa e má fama, trafulhas de tão alto coturno que merecem um Balzac que lhes romanceie a biografia.

Não tem daqueles grandes pintores ou cineastas de renome mundial, o que é pena mas está longe de ser desonra. Como também há mais de um século lhe falta um grande escritor – o Nobel não é craveira – e isso revela algo acerca do nível artístico e desenvolvimento intelectual da sua sociedade.

Mais coisa menos coisa, doutros países se pode dizer o mesmo, não fosse dar-se o caso de Portugal se distinguir por uma bizarria: a de nele parecerem ser menos os cidadãos do que os clientes. No sentido que na antiga Roma se dava ao vocábulo.