terça-feira, dezembro 25
ABERTO!
P R E F Á C I O
Desde que o conheço, o tempo duma vida, o meu editor Theo Sontrop costuma afirmar de modo terminante que o público holandês não aprecia prefácios. Segundo ele, o holandês que abre um livro quer sem mais demora entrar logo no assunto do mesmo, e não perder tempo a ler explicações ou elogios.
Devo dizer que compreendo essa atitude. O prefácio é, com frequência, a abstrusa e vaidosa apresentação que o autor faz do seu próprio talento, ou então o rosário de encómios debitados por um padrinho cotado. Acontece também que o prefácio em geral é longo. Tão longo que, quem o lê, necessita de paciência e alguma boa vontade, para ler primeiro em resumo aquilo que depois irá ler in extenso.
Ora o prefácio, pelo menos em minha opinião, não deve ser outra coisa senão um convite. E, como um convite, igualmente breve. Acompanhado dum gesto que pelo simbolismo estabeleça entre o livro e o leitor um primeiro laço de simpatia.
Esse gesto é aqui o título. Mazagran, palavra que outrossim se não encontra no texto, designa uma bebida favorita no Maghreb: um copo grande cheio até mais de um terço com café forte, um volume igual de água gasosa, muito açúcar, uma rodela de limão. Quando o Profeta abranda a sua vigilância junta-se-lhe um cálice de conhaque. Bebe-se quente no Inverno e quase gelada nos dias de calor. A pequenos goles. Com aquela disposição benigna do espírito que umas vezes nos leva à rua para cavaquear com os amigos, e outras nos prende em casa a ler um livro.
segunda-feira, dezembro 24
Surpresa no Sitemeter
domingo, outubro 21
FECHA? NÃO FECHA?
Vamos então para a simplicidade: por agora "Tempo Contado" fecha, incerto se, ou quando, voltará a abrir.
quinta-feira, outubro 4
Doisneau, Stieglitz, Kudelka...
No decurso dos anos contam-se por milhares as fotografias que tirei, e uma ou outra paisagem pareceu-me que não desmerecia, de meia dúzia de retratos também não me envergonhava. Contudo, quando como hoje abro inadvertidamente um dos meus álbuns, só posso abanar a cabeça em descrença. Que falta de talento e de técnica. Que pena tanto dinheiro deitado fora.
Mas sonhar é de graça... Doisneau, Stieglitz, Bresson, Kudelka... e burro velho não toma andadura. Há sempre uma aparelho mais avançado, uma lente que realiza milagres, um livro que promete o impossível: aprender o talento com que não se nasceu.
segunda-feira, outubro 1
Resumo de tragédia
Casou ainda rapaz, deixou a mulher na aldeia e emigrou para a Alemanha. Dezenas de anos viveu lá em solidão. À custa de privações e sacrifícios, trabalhando de dia na fábrica e à noite de porteiro num prédio, conseguiu poupar uma pequena fortuna, garantia de um futuro de vida folgada, paz de espírito e descanso do corpo.
Quando vinha de férias invejavam-no, mas também o admiravam, pois nenhum deles tinha um Mercedes assim, nem conseguira construir casa tão grande e de tanto luxo.
Boa companheira, a mulher trazia tudo num brinco e, por ter instrução, era ela quem tratava com o banco e se encarregava da papelada.
Chegou o dia do regresso definitivo. Partiu da Alemanha com a euforia de ter alcançado o que queria, mas sem saudades, porque não tinha feito lá amigos, nem ninguém sente pena de deixar o degredo.
Na aldeia receberam-no com festa. No dia seguinte, contente como uma criança, perguntou à mulher quanto dinheiro tinham no banco e ela, desvairada, confessou ter perdido tudo no jogo. Nem a casa lhes pertencia, porque estava hipotecada.
Cego de raiva, matou-a. No julgamento ouviu que lhe dera mais de cinquenta golpes com uma tesoura, mas de nada se recorda, porque, como disse em lágrimas ao juiz que o condenou a prisão perpétua, nessa altura também já tinha morrido.
quarta-feira, setembro 26
Paragem forçada
sexta-feira, setembro 21
Vizinhanças
Talvez para arejar, as portas mantém-nas ela sempre abertas, e assim ficamos expostos a uma sinfonia de sons diversos: gargalhadas, conversas com as vizinhas que a visitam, discórdias com o Benjamim, o trac-trac da máquina de costura com que coze pijamas para a fábrica...
Ao fim e ao cabo barulhos aceitáveis, domésticos, que quase naturalmente se fundem com os nossos e os restantes.
Mas às cinco em ponto a Aida liga o rádio, aumenta o volume do som e, com o entusiasmo da fé profunda, junta a sua voz à dos padres que na Rádio Renascença celebram as vésperas, entoam cânticos à Virgem e ao Cristo Rei, dizem depois a missa, seguida de pregações.
O bombardeamento obriga-nos a fechar portas e janelas, mas o sossego que isso traz é relativo. Às sete, terminam os responsos, mas já a Aida liga a televisão para acompanhar a telenovela. Às oito tem o telejornal. Às nove outra telenovela.
Se fizéssemos reparo ela não compreenderia. Então não rezamos? Não gostamos da telenovela de que todos gostam? Não seguimos as notícias?
É infernal. É de pesadelo. Devido ao calor dormimos com as janelas abertas e a meio da noite acordamos em sobressalto, a rua estreita cheia de cães. Tantos e tão agitados que não consigo contá-los, as correrias, os uivos, os latidos e grunhidos a multiplicar-se em ecos de entontecer.
Atiro-lhes pedras (tenho um saco de plástico cheio delas no peitoril), mas não se assustam nem se doem, porque cuido de não acertar no alvo. Atiro-lhes bacias de água. Desesperado e ridículo grito-lhes que se calem, que parem com a barulheira.
Escanzelados, as línguas pendentes, no espaço apertado demais para tanto bicho parecem uma onda peluda, que ora vai, ora vem, ou de repente estaca na sua ondulação.
Até que dentre aquela matilha de todos os tamanhos e feitios, alguns pastores e perdigueiros, mas em maioria vira-latas de pouco porte e pata curta, se escapa a diminuta causa do burburinho: a cadela do Guilherme.
Do nariz ao rabo quatro palmos de bicho, mas um cio que faz entontecer os pretendentes, e o ar desdenhoso de quem se vai dali porque não encontra forma para o seu pé.
sábado, setembro 15
Pausa
Há muito que deixei de me perguntar as razões porque o faço, temeroso de que não sejam válidas, nem suficientes para justificar a canseira. Vêm menos da cabeça do que do coração, o que pouco importa, pois ambos me têm sido de fraco conselho.
A prosa entra em descanso coisa de uma semana.
quinta-feira, setembro 13
Aniónios, iónios e pré-bióticos
A embalagem das esponjas informa-me que estas, à superfície, contêm matéria com menos de 5% de aniónios activos e menos de 5% de iónios inactivos BHT.
A embalagem do sumo de laranja, essa vem agora com pré-bióticos VIVINAL ® GOS.
Que deduzir disto? Que ladram mas não mordem? Ou mordem? Que matam aos poucos? Causam alergias? Eczemas? Comichão?
Será que em Bruxelas, donde vêm as directivas, alguém ocupa os dias a inventar tão indispensáveis informações?
terça-feira, setembro 11
O (meu) problema da oração
Depois, sem de todo perder a fé, vivi longos períodos em que as relações com a divindade se me tornaram nebulosas, tal um hábito perdido que vagamente se recorda. Como houve também alturas em que, sem outra porta onde bater, a aflição e o desespero me levaram a orar.
Hoje, com a calma que a idade empresta e a perspectiva do fim próximo, retorno à candura inicial, mas agora despojada do que acho supérfluo.
Creio em Deus. O resto - Jesus, Virgem, profetas, santos, milagres e mistérios... - parecem-me atributos, folclore, perturbam a minha concepção do Criador Uno e Todo-Poderoso.
A Bíblia não a tenho por livro sagrado, sim como documento histórico. Cristianismo, Budismo, Islam, essas e as mais religiões, olho-as com o respeito que merecem os fenónemos de massa milenários, e a perplexidade de que continuem a ser causa de tantos horrores. Os templos interessam-me pela sua arquitectura, os rituais pelo seu colorido. E como na teologia não encontro certezas, somente interpretações e suposições, vejo-me a sós com Deus e debato-me com o problema da oração.
Os padre-nossos que dizia como um autómato, deixaram de satisfazer a minha vontade de comunicação, e não resistem às dúvidas que me ponho, nem à análise do texto.
“Venha a nós o vosso reino” - mas haverá nele também o mal, a crueza e a desigualdade que nos afligem neste em que estamos?
“Seja feita a vossa vontade” - então de nada adianta esforçar-me por um objectivo, querer seja o que for, pedir seja o que for. Aceitar que a Sua vontade seja feita parece-me contradição, pois desdenha das qualidades que Ele próprio me deu para viver e sobreviver, faz de mim um títere, condena-me a um existir fatalista.
Assim cheguei à fase em que as minhas orações, despidas do supérfluo, traduzem apenas um sentimento de fé, comunhão e humildade. Creio em Deus Padre, Todo-Poderoso. Digo-o de olhos fechados, e esforço-me por não desesperar da minha insignificância e do vácuo que sinto.
domingo, setembro 9
Tudo bem? Prazer em vê-lo!
Homem pragmático, sossegou-me ele com uma pancadinha nas costas. Preso a um idealismo obsoleto, explicou, eu tinha parado no tempo, continuava a não querer enfrentar a realidade e, teimosamente, decidira manter-me cego.
Pois só um cego, disse, não se daria conta de que à romântica solidariedade dos anos 70 e da Revolução, tinham sucedido as duras leis da economia do mercado, onde não há lugar para tibiezas. Aliás, bem vistas as coisas, o êxodo dos aldeãos para as cidades, por certo lastimável, também tinha lados positivos. E gargalhando da boa piada, acrescentou:
- É que não há falta de operários e arranjam-se mulheres a dias muito em conta.
Não me lembro do que lhe respondi, mas a minha resposta não deve ter sido a que o seu comentário pedia. Que o fosse, ele não lhe teria dado ouvidos.
E é essa a verdade: ansiosa por parecer moderna, europeia, a nossa sociedade continua desesperadamente arcaica e bizantina. Nela os brandos costumes escondem o desespero de viver, as infindas cortesias mascaram as raivas subjacentes, a hipocrisia leva a melhor sobre a franqueza.
quarta-feira, setembro 5
Pranto
Além de uma inconveniência, parecia-me ridículo, absurdo e, corando de vergonha recordava de, muitos anos atrás, ter chorado num cinema ao ver Limelight, de Chaplin.
Outras lágrimas, raras, já deixara cair, mas essas não tinham sido de pena ou dor, sim de raiva impotente. Chorão, eu? Jamais!
Era o que pensava, com aquela certeza sobranceira que a ignorância dá. Até que, sorrateiramente, a sentimentalidade se apoderou de mim, ou o passar do tempo enfraqueceu as comportas dos lacrimais.
Uma recordação, uma música, uma criança, um animal que sofre, dores da guerra, dores da fome e da miséria, tragédias, desastres da natureza, tudo isso me humedece os olhos.
Tento couraçar-me. Digo-me que a CNN manipula as imagens, que um filme ou o romance são ficção, que os repórters são parciais, mas pouco adianta. Hoje vêm-me as lágrimas por tudo e nada, até por saber que, para os mais novos, sou eu agora o ancião que os irrita com o seu inesperado pranto.
terça-feira, setembro 4
Miudezas (4)
Actualmente vai-se a passo acelerado. Porque se tornou desmesurada a curiosidade pública, ou porque o comércio não tem tempo nem paciência, só ganância, há estrelinhas de vinte anos a autobiografar-se, detalhando os altos e baixos do seu passado.
Vende? Não há argumentos contra, só a favor.
Isto são provavelmente medos atávicos, ou ataques de pessimismo doentio. Aquela parte de mim que quer correr riscos, agir, participar, é sempre travada pela outra, a guardiã da memória dos desaires e das aflições impressas nos genes que recebi dos antepassados.
Assim me tornei exemplar no querer, mas sempre com receio de realizar, mais fértil em sonhos do que em iniciativas, a admirar os que são diferentes e uma vez por outra a dizer-me que se fosse mais novo...
Mas sei que me iludo, que me dou desculpas de mau pagador.
Em boa parte devido à carga genética, depois com o ambiente da criação, a escola e sabe Deus que mais, a partir de certa altura o carácter está formado e, a menos de milagre ou acontecimento de sérias consequências, não há forma de o mudar.
À força de paciência, alguma introspecção e trambolhões frequentes, ainda se pode ter a ideia de que nos conhecemos um pouco, mas na verdade as frestas desse suposto saber são bem mais estreitas do que os buracos negros da ignorância que temos de nós próprios.
Assim sendo, não adianta quebrar a cabeça a tentar a impossível mudança do que somos, mais vale divertirmo-nos a fingir o gostaríamos de ser.
sexta-feira, agosto 31
Despedida
A partir deste momento o passado vai-se esfumar, as recordações perderão a moldura que as tornava reais, nunca mais poderei apontar onde nos sentávamos à mesa, o lugar das camas, o da escrivaninha, a lareira, os buracos na parede da cozinha onde se espetavam as varas com o fumeiro.
Restarão algumas histórias soltas, a do avô que a construiu, a dos que na sua singeleza a julgavam um palácio, dos que aqui viveram e sofreram, dos terríveis anos em que minha mãe se enterrou viva na sua solidão.
Guardarei também a lembrança dalgumas alegrias. Poucas e singelas, mas genuínas, os momentos de desafogo, quando as ameaças do mundo e do viver pareciam suspensas.
As imagens que me pertencem surgem confusas, em turbilhão, são as duma vida inteira. Vejo-me defronte da mesma porta, mas noutros momentos e noutras idades, ora feliz, mas também desesperado do mundo e de mim próprio.
A chave roda na fechadura com um som diferente e empurro a porta, mas falta-me o ânimo. Forço-me a entrar. Espreito, sinto-me criança, amedronta-me o eco dos próprios passos. Além do recheio, a casa parece ter-se esvaziado de algo mais, da vida que lhe pertencia e da minha própria, tornando-se sinistra, com um relento de corpo moribundo.
Avanço a passos cautelosos, olho em redor, mas de facto tento esquecer o que vejo. Vou duma janela para a outra, e sem me dar conta saio às arrecuas, talvez a maneira inconsciente e simbólica de eliminar a recordação de que estive ali, de que fui testemunha do irremediável vazio que eu próprio causei.
quinta-feira, agosto 30
Vaidade
Alto, magro, grisalho, sessentão, veste com mais cuidado que bom gosto. Camisas de seda, gravatas de seda. Os sapatos rebrilham. Um barbeiro capaz esponta-lhe semanalmente a cabeleira. Audemars Piguet com pulseira de ouro maciço. No pulso direito um amuleto mexicano. Usa as unhas longas, cortadas em bico e, num gesto de coqueteria antiga, bate na do polegar o cigarro, que depois enfia na boquilha de marfim.
À sexta-feira, ao fim da tarde, visita regularmente o mesmo bar. Só bebe Laphroaig. O seu sonho secreto é de um dia vir a ser ministro, e quando fala de política vê-se-lhe nos olhos um curioso brilho.
Caminha pausadamente de cabeça erguida e um ligeiro gingar de nádegas que, fosse ele uma anciã, passaria por sensual. Aliás, examinado em detalhe ou tomado em conjunto, todo o seu ser é feminil: a finura da pele, o olhar, os gestos, a boca franzida num esboço de sorriso, o tom de voz, o modo como ouve, uma certa falsidade, o veneno do carácter.
- Levando em conta o meu modo de ser e as coisas que acho realmente interessantes, se tivesse de me definir - diz ele, convicto da sua objectividade - creio que no fundo sou mesmo o que se costuma chamar a man's man.
domingo, agosto 26
Tomem nota:
domingo, agosto 19
O escritor
Pessoalmente correspondia a um certo retrato do escritor boémio, noctívago, forte nos copos, brilhante no chalacear, com relações por todo o lado.
Cada livro seu era acolhido em certos círculos como um acontecimento de importância invulgar, e embora nem o interesse do público nem as vendas correspondessem à expectativa, ao longo dos anos tornou-se personagem importante.
A franqueza manda dizer que nunca apreciei o seu estilo, nem os temas que tratava. Ao avesso da opinião corrente, tãopouco descobri nos seus livros daquelas centelhas que denunciam, senão o génio, pelo menos um grande talento. A sua prosa surgia-me corriqueira, os diálogos artificiais, os personagens anémicos, os seus símbolos de uma dolorosa simplicidade.
No correr dos anos, por intermédio de amigos comuns, encontrámo-nos duas vezes - uma terceira não conta, porque apenas trocámos um distraído “Está bom?" - não simpatizámos, e de ambas guardo recordações desagradáveis.
Não fazia dúvida que o homem era inteligente, narrava com verve, e possuía uma excepcional capacidade de se manter no centro da atenção. Mas se o interrompiam, logo o seu rosto parecia esvaziar-se do entusiasmo e, impaciente, puxava fumaças ao cigarro até reganhar a vez.
À mesa era companheiro jovial, só que o vinho e o uísque de pronto lhe faziam perder a bonomia, transformando-o num personagem intratável.
Em ambos os nossos encontros estávamos na companhia doutros, e de ambas as vezes me despedi antes do tempo, temendo que o seu modo se tornasse mais penoso do que o que já era.
Faleceu. Foi um nunca acabar de odes e panegíricos, ditirambos, coroas de louro. Como frequentemente acontece, julgando talvez que ao fazer-lhe honra partilhariam da fama, os admiradores prestaram um mau serviço ao homem e à sua obra, afirmando que com ele desaparecera “um dos maiores, senão o maior escritor do século.”
quarta-feira, agosto 15
Tempo quente
Vieram para jantar e a surpresa deu-se logo à entrada. Embora ainda sem exagero, ele deixara crescer o cabelo, usava agora uns óculo diminutos e, em vez do vestuário costumeiro - fato escuro de cheviote, camisa branca, gravata de seda - vinha de hawaiana, jeans, e umas sandálias abertas donde saíam, grossos e calejados, os dedos dos pés.
Ela, que sempre víramos de deux-pièces, lenço Hermès e tacão alto, vestia uma túnica informe, colorida, de decote fundo. Nos braços nus usava umas pulseiras aparentemente feitas de bolotas. Os brincos eram umas florzinhas. Segurava o que eu supus ser um alforge, de cânhamo grosseiro e desenhos de misteriosa geometria que, disse, comprara em Cuernavaca a um índio tlahuica. As sandálias, como as do marido, eram mexicanas e iguais às dos campesinos.
Provavelmente esperavam o nosso espanto, porque logo explicaram que só se vestiam assim nos fins-de-semana. Mas era engraçado, não era? Brincadeira inocente. Se bem que devêssemos concordar que havia muito a aprender com a juventude. Para nossa vergonha, essa seguia um caminho diferente, progressista, zombando das convenções e dos valores tradicionais, alegremente disposta a demolir o carunchoso edifício social.
Comemos em paz, se bem que vindas de tal gente as afirmações causassem um certo embaraço. Diziam aquilo a sério? Éramos nós irremediáveis botas-de-elástico?
A conversa prosseguiu no mesmo tom, mas em certo momento reparei que, pelo vinho ou confusão das ideias, o notário sorria esquisito e enredava-se na fala, deitando em redor um olho concuspicente.
A mulher, que tinha o desagradável hábito de comer e fumar em simultâneo, essa afastara a cadeira da mesa, cruzara as pernas e, queixando-se do calor, arregaçara a túnica bem acima das coxas. Voluntário ou não, a cada movimento os seios nus debruçavam-se-lhe no decote, e ela, ora os recolhia com um sorriso maroto, ora dava a impressão de que, pendurados, lhe não pertenciam.
Devido talvez a que a discordância das opiniões nos travasse o entusiasmo ou a vontade de reagir, a sobremesa passou-se num silêncio quebrado apenas pelos costumeiros resmungos de satisfação. Mas bebido o café, saboreado o primeiro golo de conhaque, o homem pareceu endireitar-se, pôs uma expressão séria e, sem mais nem menos, quis saber o que pensávamos da troca de pares.
Além de caber na assustadora concepção holandesa de que há virtude em ser-se directo, e debitar sem freio o que nos passa pela cabeça, depois das piscadelas, das alusões brejeiras, e aqueles seios que iam e vinham, a pergunta não era de todo inesperada. Mesmo assim fez-me engolir em seco, se bem que consegui sorrir e encolher os ombros, no íntimo a perguntar-me se, sem ferir susceptibilidades, seria possível conciliar a hospitalidade com a ironia.
Daquele embaraço salvou-me o hóspede que, do mesmo modo abrupto em que tinha entrado no assunto, igualmente lhe pôs fim. Não com palavras ou explicações, mas baixando os olhos e, um pouco depois, quando o seu mutismo começava a tornar-se penoso, com a observação de que o tempo andava excepcionalmente quente.
domingo, agosto 5
"Camel toe"
Por uma conversa entre duas desconhecidas, ouvida ontem numa esplanada, fiquei a saber que é moda, talvez no próximo Verão seja já tão corrente como as tatuagens e os piercings. Consegue-se avantajá-lo com injecções de Botox. Victoria Beckham, dezenas de stars e dezenas de topmodels todas o fizeram, basta vê-las de biquíni.
As desconhecidas gargalhavam, folheavam uma revista, de vez em quando repetiam o nome que, de tão bizarro, facilmente memorizei.
Em casa Google informou-me do que eu ainda não sabia sobre Camel toe.
quinta-feira, agosto 2
A obrigação da Europa para com os portugueses
Agora que alguns sugerem que a Espanha nos anexe, e outros alvitram que talvez seja melhor entregarmo-nos antes que ela, como da outra vez, nos compre e depois nos invada, este velho texto não é achega para discussões sérias: intenta apenas aborrecer os patrioteiros e piscar o olho ao profeta Saramago.
A OBRIGAÇÃO DA EUROPA PARA COM OS PORTUGUESES [i]
Nos últimos vinte e cinco anos a história de Portugal regista, como acontecimentos mais importantes, o fim do império colonial, a queda do regime fascista e o restabelecimento da ordem democrática.
Se bem que, à primeira vista, a restauração das liberdades e dos direitos se possa considerar um benefício, os três acontecimentos citados contribuem para fortalecer no observador perspicaz a certeza de que na história dos países pobres se repetem, ampliadas, as desgraças que afligem as famílias em penúria.
A obtenção repentina de um bem pode, em ambos os casos, dar origem a desequilíbrios tais que, passada a euforia e a surpresa, se anseia com desespero o retorno dos males antigos. Vistos à distância, e comparados com os malefícios do momento presente, sempre aqueles parecem de menor porte, mais suportáveis, arrepende-se a gente da ingenuidade com que lutou contra eles.
A partir do momento em que. nos fins do século XVI, termina a grande aventura dos Descobrimentos, a história de Portugal caracteriza-se, sobretudo, pelo seu aspecto regressivo. Enquanto que a generalidade dos países progride, e alguns, mais infelizes, param, o excêntrico Portugal recua.
A Holanda acelera os estudos da biotecnologia. Na Inglaterra pode dizer-se que literalmente chovem computadores nas escolas. Os franceses já pagam com a smart card. O Lesotho e as Maldivas incrementam o turismo e a prostituição. Taiwan, Singapura, a Coreia do Sul estão na ponta do progresso industrial. A Albânia excede-se a demonstrar a viabilidade da sua ortodoxia política. O Paquistão prepara a bomba...
No meio deste concerto de nações que se mexem, avançam, ou que por teimosia ou infelicidade são obrigadas a parar, a minha pátria dá ao mundo o espectáculo extraordinário e único de um país a caminho do passado.
Tendo por fontes de receita quase exclusivas o dinheiro que lhe mandam os seus emigrantes, e os empréstimos que de má-vontade lhe vão sendo concedidos, Portugal, se fosse pessoa, já há muito teria sido condenado à falência.
Essa dependência da generosidade dos seus filhos e da paciência dos seus banqueiros, aliada às consequências de uma mentalidade que dos antigos colonizadores - fenícios, gregos, romanos, visigodos, árabes e ingleses - apenas guardou aquilo que eles lhe deixaram de pior, tem por consequência um formidável desleixo, um descalabro sem igual. A sua corrupção torna mínima a do Paraguai. A incompetência dos que o governam ultrapassa a que se atribui aos políticos nas comédias. Nas suas cidades e aldeias descobre-se uma miséria que não destoaria no Bangladesh.
Agora que na CEE[ii] se delibera sobre a maneira de permitir ao pobre Portugal sentar-se a um canto da mesa dos países ricos - não para comer com eles, evidentemente, apenas para que as migalhas que lhe derem evitem que a sua falência e morte possam vir a ser vergonhosamente repentinas - eu gostaria de recordar, e na medida do possível actualizar, uma solução radical proposta internacionalmente em fins do século XIX para resolver os males, já então crónicos, do meu país.
Claro que, como acontece com a maioria das soluções radicais, se terá de fechar os olhos a um ou outro ponto da moral vigente. Isso, porém, não será de molde a sobressaltar ninguém, habituados que estamos a que a moral, como o dinheiro e outras certezas antigas, se desgastem com o tempo.
A solução que proponho, vantajosa para todos os que nela participarem, resume-se na venda pura e simples de Portugal a um consórcio de nações ricas, evitando-se assim o espectáculo de um país que, vivendo de esmolas, só tem como futuro o espaço de tempo que a esmola lhe concede.
Evitam também as nações ricas o incómodo que causa o terem de abrir a porta ao velho fidalgo colonial que, de mão estendida, pede que lhe acudam à miséria.
Fosse menor o volume das suas dívidas, poderia pensar-se em recorrer a um desses árabes que, ricos em petróleo e ouro, discutem pouco e pagam a contado. Mas é evidente que não se pode tratar aqui de iniciativa particular, pois um país, com o seu território, os seus cidadãos, a sua história, sempre tem outra importância que a compra dum camelo num oásis.
Soluções novas, pouco correntes, levam necessariamente à utilização de métodos inéditos. É por essa razão que eu, sem possuir quaisquer outras qualificações que a de ser português e, por conseguinte, directamente interessado, me atrevo à sugestão que segue.
Em primeiro lugar devem os banqueiros e políticos estrangeiros decidir sobre o montante a pagar, o qual, recomendo, não deve exceder o valor dos débitos a solver.
Evite-se a todo o custo que quantias em líquido ou cheques descontáveis passem, mesmo por um instante, pelas mãos dos políticos, pois logo eles as farão desaparecer a caminho das contas numeradas e dos fundos secretos.
Resolvido esse preliminar, as nações compradoras mandarão construir um muro sólido ao longo da fronteira terrestre. Aqui e além, onde hoje, por exemplo, passam as principais estradas, será aberto um certo número de portões, guardados severamente por uma polícia europeia. As entradas e saídas deverão ser totalmente proibidas durante um período de, digamos, cinco anos.
Uma força naval, também europeia, poderosa e veloz, manterá do lado do mar a mesma vigilância rigorosa, não permitindo mais que a navegação de barcos de pesca a remos ou vela até à distância máxima de duas milhas da costa. Cada infracção será punida com a pena de morte. Igualmente será proibido todo e qualquer intercâmbio com Portugal, mesmo o dos rádioamadores ou dos columbófilos.
Ao cabo de cinco anos o desgaste e o desleixo, aliados à tendência nacional de ir a passos largos para o passado, ter-se-ão encarregado de destruir, ou pelo menos de danificar de modo irremediável, a maioria dos vestígios da modernidade.
O número de veículos diminuirá drasticamente. Os aviões, proibidos, aliás, de levantar voo, enferrujarão nos aeroportos. Dos comboios só funcionarão aqueles cuja solidez resiste ao tempo e à incúria, tais como os que ainda hoje fazem a linha do Sabor, com locomotivas de 1904[iii] e carruagens do mesmo ano.
A fome, o desespero, a doença, a tristeza e a velhice, que nas circunstâncias actuais são causas de morte lenta, verão aumentada a sua eficácia, e a população, que anda agora pelos nove milhões, cairá para três ou quatro.
A inexistência de adubos, aliada à falta de máquinas, fará retrogradar a lavoura a um bucolismo bíblico. E não somente nas aldeias, mas mesmo nas ruas de Lisboa, hão-de ver-se mulheres a fiar lã e homens agasalhados em peles de animais.
Haverá rebanhos a pastar nos jardins públicos. Os amoladores, os aguadeiros, os ferradores, as lavadeiras e os almocreves, todas essas profissões antigas terão a sua renascença, e a substituir a defunta televisão far-se-ão representações de saltimbancos.
A água dos rios e ribeiros ganhará a limpidez original e, sem cair no ridículo, os poetas de novo poderão compará-la com a clareza dos olhos da mulher amada. Ou vice-versa.
Nas casas brilharão as candeias de azeite e as velas de cera de abelha. Para os transportes recorrer-se-á à segurança pachorrenta do carro de bois. Os soldados e os amanuenses terão, como antigamente, de lutar à mão e de escrever à mão, do que resultará um desânimo ainda mais acentuado para ambas as classes.
As universidades serão encerradas, pondo-se termo a certas profissões como a de médico ou engenheiro, encorajando-se o retorno das mulheres de virtude, dos endireitas e dos ervanários.
A existência do dinheiro será proibida, e a posse de qualquer forma de valores, ouro, prata ou semelhantes, punida com o enforcamento em público. Os cidadãos viverão numa economia de troca, somente aplicável aos artigos de alimentação e vestuário.
As sedes dos bancos serão transformadas em catedrais, e as suas agências em igrejas ou capelas, consoante o tamanho, havendo nelas serviços religiosos permanentes, durante os quais se pedirá ao Altíssimo o regresso dos tempos em que em Portugal havia mouros, bruxas, a peste negra e um pássaro com cara de gente e pés de cabra.
Bem pensado, talvez cinco anos seja um prazo demasiado curto. Suponhamos dez. Durante esse tempo Portugal não custou um centavo, nem fez dívidas. Se não participou no concerto das nações, também não importunou ninguém com pedidos de esmolas e de empréstimos.
O muro a fechar as suas fronteiras e a marinha a isolar as suas costas, a proibição de intercâmbios ou contactos, e a apatia nacional, terão entretanto contribuído para que, finalmente, o país se ache em condições de se tornar um investimento lucrativo para o consórcio que o tiver comprado.
As nações compradoras, eventualmente assistidas pelos organismos internacionais que cuidam da manutenção dos monumentos, poderão fundar um instituto cujo fim será o de organizar excursões ao velho Portugal.
Os autocarros e os comboios não serão autorizados a atravessar o muro, sendo os viajantes transferidos na fronteira para carros de bois que, lentamente, ao som dos chocalhos e das rodas a chiar, os levarão por montes e aldeias, dando-lhes assim uma oportunidade educacional e recreativa única.
A esses turistas não somente será possível confrontar in vivo o passado, como ao mesmo tempo lhes fará entrar no corpo e na alma um medo salutar. Ao fim de cada jornada os guias reunirão os participantes nos adros das igrejas e, no decurso de uma refeição medieval, explicarão as causas que levaram à venda de Portugal.
À noite, deitados sobre faixas de palha, esses cidadãos ressentirão o calafrio que toma os ricos, quando repentinamente enfrentam a pobreza. E certamente regressarão aos seus países mais contentes, mais felizes, mais dóceis.
Resumindo: a obrigação da Europa para com os portugueses é, pois, seguir o exemplo do que fizeram os Estados Unidos com os índios e o Kénia com os animais, e fechar-nos numa reserva. Para benefício comum e para evitar que, deixados a nós próprios, acabemos por desaparecer.
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[i] Publicado em tradução holandesa na revista De Gids, nr 8/9, Amsterdam, Agosto de 1984.
[ii] Communauté Économique Europénne.
[iii] A linha do Sabor foi desactivada em 1988.
sexta-feira, julho 27
Mar de Sargaços
Provavelmente terei de aceitar que sou impenitente no hábito de esbanjar tempo. Vivendo e raciocinando em círculos. Obrigado a reconhecer que, sem conserto, aguardo que aconteça amanhã o que não se deu hoje. Que continuo à espera que me cheguem de fora os estímulos que no meu íntimo faltam.
É penoso dizê-lo, mas verdadeiro, que há momentos em que a névoa do espírito se me torna tão densa que me vejo a desejar um drama, um desastre, pouco importa que sacudidela brusca. Algo que me agite ou transforme, como acontece aos que têm visões e se convertem a uma religião, a uma política, aos que num assomo se desfazem de bens e laços e vão bater à porta dos conventos, ou se metem a caminho da Patagónia.
Fascinado pelo seu mistério, sempre tenho tentado esmerar-me no uso da linguagem escrita. Eufonia, ritmo, diversidade do vocabulário, em cada frase procuro conseguir uma harmonia que infelizmente (ou felizmente?) não se estuda em manuais, não tem regras fixas, e em boa parte depende do estado de espírito.
De modo que uma frase com rimas, que num momento me perturbam e penso em riscar, é muito capaz de no momento seguinte me parecer conseguida e até original.
Hesitando, medindo, repetindo, umas vezes a tirar, outras vezes a repor, assim vou compondo com lentidões de caracol. No intuito de dar o melhor de mim próprio e, na medida do possível, contribuir para manter as qualidades e a beleza da língua-mãe, a qual, por razões que nem sempre entendo, continua a ser a âncora a que me agarro no Mar de Sargaços do meu espírito.
sábado, julho 21
O poeta
Preocupação avassaladora: marcar presença em manifestações e festividades. Júri de concurso de poesia sem ele é impensável. Júri em que não participe põe-o de cama. Já o vi na televisão em júris de misses, em programas de canções folclóricas, de culinária, a explicar os imbróglios dos Balcãs e o progresso económico da China.
No dia-a-dia é burocrata. Pessoalmente, um torturado. Na juventude, por razões que se compreendem, escondia a sua homossexualidade. Mas mais tarde, quando pôde assumi-la, continuou encoberto, o amante que tem há dezenas de anos obrigado a viver noutra casa, proibido de o acompanhar a cerimónias. Isso mau grado o “grande amor” cantado em odes e sonetos.
Faz tempo foi informado de que por altura dos festejos do lançamento da edição integral dos seus poemas, seria interessante, valioso, publicar também a sua correspondência amorosa.
Fora o destinatário ninguém a tinha lido, mas dado o modo como esse se lhe referia, e uma ou outra citação do “Mestre”, corria à boca pequena de que era obra-prima da epistolografia erótica.
Todavia, ou arrependido dos seus arrebatamentos, ou porque temeu pela qualidade da prosa, uma tarde foi em segredo à casa do amante, roubou-lhe as cartas, e lançou-as ao lume.
Dias atrás vi a sua fotografia no jornal. Escaveirado. Envelhecido. A calva circundada por guedelhas esfiapadas a cair-lhe sobre os ombros. O olhar febril do egocêntrico sempre esfomeado de atenção.
terça-feira, julho 17
Fingimento
A exposição destinava-se sobretudo a encorajar o talento dos jovens que nela participavam, e uma exposição que se preza exige catálogo.
Dentro desse contexto escrevi então umas quantas páginas simpáticas, mas com um certo acanhamento, pois os louvores que nelas dava não me tinham vindo do coração, só da cabeça, e com o correr do tempo esqueci-os, talvez porque me envergonhava deles.
Entretanto um desses jovens faleceu, e a família, querendo homenagear a sua memória, preparou uma pequena brochura com reproduções de alguns dos seus trabalhos. Recebi-a hoje e nela, surpreso, encontro as palavras que então escrevi. Palavras que não foram sentidas nem sinceras, e agora me apanham de ricochete, como se o defunto se vingasse do meu fingimento.
terça-feira, julho 10
Sugestão
Dúvidas
Por razões que não me explicaram, a viúva quer saber o significado das palavras que Amália canta e, por intermédio de alguém que sempre me convence a fazer o que me desagrada, meto-me à tradução.
Pergunto-me, contudo, que dúvidas irão assaltar a senhora quando ler frases como estas: “Na espuma dos dias tu eras a luz do sol”, “O calor dos teus beijos na franja da minha vida”, “Abri-me desfalecida contra ti, sugada pelo desejo.”
sábado, julho 7
Questionário
A minha pobre cabeça mói e remói ideias que não valem um chavo, para finalmente, exausta, pegar numa sem saber se é a pior ou a melhor. Será isso inspiração? Não me parece. Para os temas a mesma coisa. Como escrevo? Com um computador. Lugar preferido? Não. Devido ao acanhado espaço o computador está num canto, e é aí que tenho de me sentar.
Que esperam de mim? Manias? Comportamentos bizarros? Fetichismo?
Tudo o que se relaciona com a minha escrita é prosaico, trabalho de artífice, não conhece romantismo nem elevação. Por conseguinte, e para não desiludir ninguém, é melhor não preencher.
domingo, junho 24
Amsterdam
Se vêm de visita e partilham uns dias a minha realidade, recusam acreditar que eu de facto viva entre as quatro paredes do meu quarto de trabalho. Sorriem, desconfiados, achando que deve ser pose. E nem a minha idade levam em conta. Assim que voltarem as costas eu de certeza recomeço a ir às festas, aos cafés...
sexta-feira, junho 22
Ernestina
Ernestina (1912-2007) faleceu ontem, enterra-se hoje.
Mãe de um só filho, a sua vida, que foi uma de tristeza, amargura e terrível solidão, dava um livro. Escrevi-lho eu. E a sua morte quebra o último elo carnal que me ligava à terra onde nasci. Felizmente são ainda muitos e fortes os laços que a ela me prendem.
quarta-feira, junho 20
Solidariedade
Nem ingleses, nem franceses, alemães, judeus, polacos ou russos. Simplesmente, como com gravidade disse, pela gente que sofria. E eu poucas vezes voltei a sentir um calor de solidariedade que se comparasse ao que conheci nesse momento dos meus nove anos.
terça-feira, junho 19
quinta-feira, junho 14
Intervalo
segunda-feira, junho 11
Andorinhas
Escultor de talento, homem de gosto, bon-vivant, narrador capaz, sério quando é preciso, o meu amigo explora em Quintas das Quebradas , aqui ao pé, um excelente “Turismo Rural”.
Hospeda lá as gentes mais variadas, boa percentagem dela citadinos em busca de ar puro e desejosos de, com os próprios olhos, verificar se os transmontanos ainda vestem burel.
O casalinho, à volta dos trinta, logo na primeira manhã apareceu equipado como manda a moda quando se vai em expedição: botas de monte, calções, mochila, binóculo, Ixus, cantil, etc…
O Manuel encontrou-os junto da piscina, prontos para a marcha, e deu-lhes cortesmente os bons-dias, acrescentando qualquer coisa sobre o azul do céu e a promessa de muito calor.
As andorinhas desciam em voo rasante a beber ou a apanhar os insectos que boiavam na água, e foi aí que a jovem, sorrindo como quem se desculpa da curiosidade, disparou a extraordinária pergunta:
- Estes pássaros são seus?
O Manuel hesitou meio segundo, imaginando gracejo, mas a jovem “lesvoeta” queria realmente saber, e ele concedeu:
- São, são! Tenho-os numa gaiola atrás do muro.
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Para que conste: www.casadasquintas.com . O copyright de “lesvoeta” é do Luís Alves, que também dá por Luís de Boticas.
sábado, junho 2
O Além?
Pressa de morrer não tenho, e tanto quanto julgo conhecer-me é-me alheia a tendência para o suicídio, mas uma vez por outra dá-me um certo frémito de curiosidade de, se porventura nele algo existe, saber como será o Além.
Em paraísos de huris libidinosas ou anjos a tocar harpa nunca consegui acreditar. Tãopouco nos infernos onde o Diabo se entretêm a grelhar os infiéis. Mas teremos uma consciência depois da morte? Uma forma? Será que o esforço que fazemos para aprender, para melhorar, conhecer, criar, construir, progredir, nada é, nada importa, e desaparecerá connosco num infinito vazio?
sexta-feira, maio 25
Escapismo
quinta-feira, maio 24
Linhas trocadas
Imaginemos agora que esses sinais, provenientes dum ou doutro remoto planeta, sofrem por vezes de trocas de linha (de onda?) e são recebidos pelo destinatário errado.
Não se poderia explicar assim o destrambelhamento que, sem razão visível às vezes sentimos, tornando-nos por instantes estranhos a nós próprios?
segunda-feira, maio 14
Girls Gone Wild
Um inesperado aspecto decorrente desse fenómeno, é o das jovens modernas que, supondo que talvez isso também signifique emancipação, se sentem próximo das clássicas atitudes de superioridade masculina (if you can’t beat them, join them), reservando para as suas congéneres um desdém rabioso de que qualquer homem decente se envergonharia.
A quem o assunto interessar, será proveitosa a leitura de Female Chauvinist Pigs, de Ariel Levy.
quinta-feira, maio 10
Frustração
O certo é que vejo comentários a este blog fulgurar num instante e a desaparecer no seguinte, mails que chegam com inexplicável atraso, outros que somem…
Fosse o regime de monarquia, certamente me queixaria ao soberano. Mas que fazer, se somos todos a mandar?
quarta-feira, maio 2
Desânimos
Devido talvez a algum defeito genético, ou às circunstâncias em que vivo - agarrado à língua materna, obrigado a usar outras no dia-a-dia - o meu cérebro funciona como uma desgarrada máquina de traduzir. Tudo o que me preparo para dizer tradu-lo ele automaticamente para Português, o que, além de cansativo, causa por vezes hiatos na conversa, e de certeza dá aos meus interlocutores a impressão de que sofro de afasia.
quarta-feira, abril 18
Memórias
Sem que lho pergunte, informa-me que começou a escrever as suas memórias, tendo chegado à página cento e doze. Não diz mais e encara-me, mas o comentário que ele aguarda não me ocorre.
Curiosidade pelo seu opus também não tenho, e por isso ficamos num silêncio desagradável que ele finalmente quebra, dizendo que parou por se sentir insatisfeito com o que fez. Em sua opinião um livro de memórias não deve ser apenas a listagem cronológica de recordações e acontecimentos, mas possuir sobretudo um fio condutor. O que é que acho?
Sem convicção, só para evitar que o diálogo caia no que lhe agrada e a mim aborrece, “o tom literário,” respondo-lhe que sim, que também acho. Mais tarde, recordando a conversa, digo-me que na vida, e nas memórias que sobre ela se escrevem, os fios condutores são ilusão. O caos, esse sim, é real e palpável.
domingo, abril 8
Basófias
Pessoalmente acho que a nós, humanidade, nos abona pouco o avançar com tanta rapidez na tecnologia, e deixar para trás o desenvolvimento das ideias e da sociedade, condenando a maioria a viver em situações que já em séculos longínquos eram degradantes.
Constatar isto também é lugar-comum, e de nada adianta sonhar ideais num tempo que, dito moderno, progressista, a lei ainda não é ditada pelo mais justo, mas pelo mais forte.
Estas considerações vêm-me em aparte, um desvio do raciocínio, pois o meu intento era anotar a preocupação que me causam as fotografias que mostram a Terra no espaço. Ou as dos satélites metereológicos.
Olho-as e tenho de acreditar. Naquele grão de poeira (não param os lugares-comuns), que Eça definiu como “uma bola a rebolar nos céus com basófias de astro” - vivemos, sofremos, inventamos religiões e teorias da existência, esquecidos da nossa infinita pequenez.
segunda-feira, abril 2
N' "O Artur"
Uma mulher e três homens, gente de meia idade, dão nas vistas pela gosto com que comem e o muito que riem.
Terminaram. Levantam-se. Ligeiramente toldados, mas na mesma boa disposição, esperam comigo junto da caixa que Artur júnior faça a conta.
Como se aquilo lhe ocorresse de súbito, um deles pergunta:
- Oiça lá! Você é que é o Artur?
- Sou - responde o interpelado.
- É? Tinham-me dito que era mais velho!
- Deve ser o meu pai.
- Mas quem é o Artur? É ele ou é você?
- Ambos. Temos o mesmo nome.
- Espere aí! Então ele é Artur, você é Artur, e o restaurante também é Artur?
- De facto.
- Ai que caralho! Não sabia! Nunca cá tínhamos vindo! Andamos por toda a parte, mas p’ra aqui nunca tinha calhado. Sabe quem nos disse p’ra vir? Foi aquele sujeito gordo de São João da Madeira. Conhece? Um que vem cá muitas vezes com o outro, que é magro. O que deixou a mulher. Andam sempre juntos! Não se lembra? O que antes tinha a bomba da gasolina! Veja lá se se lembra!
domingo, abril 1
sms
Não se conheciam. Tinham combinado encontrar-se a meio da manhã em Mirandela. Almoçaram demoradamente na Estalagem do Caçador, em Macedo de Cavaleiros. Pararam depois num desvio da estrada e viram passar um rebanho, as ovelhas com uma lã cinzenta que para ambos era novidade.
Continua a sorrir, diz que no regresso a Mirandela, fazia frio, mas mesmo assim escolheram um banco na alameda junto do rio. E aí ficaram, não sabe quanto tempo.
Despediram-se. Cada um para seu lado. Mais tarde sentira o telemóvel vibrar.
Suspende a narrativa, mas o sorriso como que lhe ilumina a face quando agora liga o aparelho e me dá a mensagem a ler:
“Um dia inesquecível! Para recordar a vida inteira. Eu já cheguei. Beijinhos.”
Quer que eu comente. Ignoro os detalhes, mas digo-lhe que sim, deve ter sido lindo.
Navegação
A partir de hoje e quando o vento for de feição, durante os próximos três meses a barca retoma o navegar, agora num dos seus trajectos favoritos: entre Miranda e a Foz do Douro.
sexta-feira, março 23
Pausa
Partida
Umas vezes digo-me que enriqueci o espírito, noutras tenho a impressão de que me amputei. Ora me regozijo com as vantagens deste duplo pertencer, ora me amarfanha a certeza de que em parte nenhuma pertenço por inteiro. Tenho consciência de que constantemente ganho e perco, mas sem que o ganho traga satisfação ou a perda se mostre irremediável.
Talvez por isso só na língua materna encontro a estabilidade que no resto me falta. E parafraseando Pessoa - “A minha pátria é a língua portuguesa” - de verdade ela para mim não é apenas idioma, modo de expressão, mas como que um lugar, por vezes mesmo um refúgio.
quarta-feira, março 21
O que agora lhe aponto mal se pode chamar defeito, é antes o desvio de uma qualidade, o desejo que tem de pôr os outros ao corrente daquilo que o interessa.
Antigamente fazia-o por carta. Uma ou duas vezes por mês, lá vinham os extensos relatos acompanhados de citações e recortes de jornais. Mas desde que descobriu o correio electrónico, a sua sede de comunicar passou de bimensal a diária. Tudo o que lhe agrada, comove, assusta ou preocupa, comunica-o ele de imediato, juntando em anexo artigos e fotografias, em quantidade tal que o computador leva eternidades a receber os megabytes.
É também estonteante, porque o seu interesse abrange desde as profecias de Nostradamus à crueldade contra os bichos, da independência de Timor à dosagem da vitamina C, da certeza que o mundo acabará em 2017 aos monges voadores do Tibet. E mais, cansativamente mais.
Depois, ou porque quer assim, a mostrar o vasto círculo dos seus corresponentes, ou porque desconhece como eliminá-la, as suas mensagens terminam com a lista de todos endereços para onde as envia.
No tempo em que usava a máquina de escrever, a fotocópia e o correio, suponho que as não mandasse a mais de dois ou três. Mas o computador abriu-lhe perspectivas inesperadas. Recebido a noite passada, o seu último e-mail, alargando-se em considerações sobre a pena de morte, a economia do Irak, os livros de Paulo Coelho, os malefícios da utilização de navios-fábricas na pesca oceânica, a eficácia da Coca-Cola no tratamento da diarréia, o escuro site de Dolce & Gabbana (http://www.dolcegabbana.it/ ), conta nada menos de sessenta e um destinatários. Entre eles o presidente Putin (president@kremlin.ru) e um espiritosanto@angola.com.
domingo, março 18
Cântico dos Cânticos
como selo no teu braço,
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão,
os seus ardores são chamas de fogo, são labaredas divinas.
Está no Cântico dos Cânticos (Cant 8,6). Talvez que no vasto mundo e neste momento da noite, em vez de estar a lê-las na Bíblia como eu, alguém sussurre estas palavras a quem ama.
sexta-feira, março 16
Doutores
Na realidade considero as boas verdadeiros microcontos, razão porque deixo aqui duas das minhas favoritas. Com desculpas a quem já as conhece.
Deveria ser um velório como de costume, com prantos e soluços, olhares tristes, abraços de pesar, boas recordações do defunto.
A gente era muita, por isso mais inacreditável e doloroso se tornara o silêncio geral. De facto, pelo extremo das suas más qualidades, o passamento do sujeito tinha sido um alívio para todos os presentes.
O uso mandava, mas como elogiar o filho da puta? Até que finalmente alguém suspirou: - O irmão era muito pior.
O lavrador siciliano tinha comprado um horta. Preocupava-o o ter de registá-la, mas o notário acalmou-o: a acta era coisa simples.
No dia seguinte a papelada estava pronta.
- Assine aqui.
- Eu bem pensava... Vamos ter um problema, porque sou analfabeto.
- Problema nenhum. Faça nesta linha uma cruz, é a assinatura, o mesmo que o seu nome.
O lavrador risca duas cruzes. O notário irrita-se:
- Homem! Era só uma cruz! O nome.
- Bem ouvi, mas uma é o meu nome, a outra é Dottore.
quinta-feira, março 8
Comadres
Sob a influência generalizada do inglês, desde há anos que se passou a chamar-lhes colunistas. O tom agora é ligeiro, a prosa descuidada, no melhor dos casos banal a temática. No pior descem à mexeriquice, e quando a mexeriquice falta escrevem uns sobre os outros. “Como dizia fulano na sua coluna de ontem... A perspicaz análise que hoje se lê na coluna de sicrano... ” *)
Assim cavam os jornais a própria cova, servindo-nos, requentado, o noticiário que ontem à noite vimos na televisão, enchendo o resto das páginas com textos banais e fotografias inúteis.
O jornal, que no passado a opinião pública considerava um cavalheiro, tornou-se uma comadre.
______________________________________
*) Interessante desenvolvimento: os bloguistas vão por caminho igual. Em bom número de blogs nota-se uma demasia de abraços, parabéns, citações, palmadinhas nas costas, com o correspondente e inconfundível cheiro a capelinha.
quarta-feira, março 7
Larachas
Nessa muito presente lembrança reside talvez a origem do bizarro fenómeno a que por vezes me sinto sujeito. Acontece que durante certos sonhos tenho consciência de sonhar de novo sonhos anteriores, o que me transporta para uma inquietante duplicação da memória, do sentido da realidade e do eu, e ao mesmo tempo me impede de saber se, como suspeito, apenas uma parte de mim sonha, enquanto outra espreita insondáveis mistérios.
"Larachas", comenta um conhecido a quem falo disto. E embora saiba que não me convence, tenta acertar uma mocada definitiva na minha fantasia, acrescentando: "Isso provavelmente é a consequência de refeições pesadas. Uma questão de química."
domingo, março 4
Sessões de autógrafos
Chega mais gente. Alguns arriscam um cumprimento, palavras de apreço, e finalmente surge o inevitável tarado. Com o ar decidido de quem sabe ao que veio, anuncia-me que quer comprar um exemplar, mas sob uma condição: que eu escreva numa das páginas em branco um comentário pessoal, de preferência irónico ou malicioso, sobre um escritor vivo.
Respondo-lhe mal humorado com um redondo não. A tentar convencer-me, o homem diz que estranha a minha atitude, pois até à data escritor nenhum recusou satisfazer o seu pedido. Atente eu que a negativa significa que não estarei presente na sua interessante, e um dia valiosa, colecção de volumes comentados.
Dá-me vontade de mandá-lo àquela parte, mas o lugar e a presença doutros obrigam a que me contenha. Repito-lhe que não e de súbito é como se estivéssemos numa feira:
- Palavra que não quer escrever? Só umas linhas? Olhe que se arrepende. Vou-me embora e não compro livro nenhum.
Uma espécie de Feira do Livro num dos canais de Amsterdam. Estou sentado entre uma parede e uma mesa com alguns livros meus. A multidão passa, ininterrupta. De vez em quando alguém pára, folheia, olha os livros, encara-me, sorri. Um diálogo de surdos-mudos.
Uma mulher agarra um livro, abana com ele a chamar a minha atenção e pergunta:
- O senhor fala holandês?
No mesmo momento em que lhe respondo ela pousa o livro e, sem me encarar nem reagir, volta-me as costas.
Um casal. Acenam de longe, sorrindo com simpatia. Aceno e sorrio também. Param, voltam atrás, o homem grita por cima das cabeças:
- Hoje de manhã comprámos um livro seu.
- Obrigado.
- E vamos lê-lo.
Que responder?
No mesmo lugar, à mesma mesa. Dois sujeitos aí duns trinta anos param, folheiam distraidamente os livros - que procurarão ao fazer correr assim as páginas? - pousam-nos, pegam noutros. Um deles abre um livro meu, olha a capa, revira-o e, apontando-me como se eu fosse uma figura de cera e não um ser vivo ali a metro e meio deles: - Já leste alguma coisa deste gajo?
Leiden. Imóvel e silenciosa, uma mulher observa-me há minutos. Aquilo começa a tornar-se desagradável. Levanto-me para alcançar o livro que um rapaz me entrega para autografar, e nesse momento a mulher desperta, sorri, e diz-me contente: - Enganei-me! Julguei que fosse mais alto!
Amsterdam. “Mercado das Letras” no Bijenkorf. Somos mais de cinquenta, sentados atrás de mesas onde os nossos livros se empilham. O público passa durante três longas horas. Incessantemente. Milhares de rostos. De vez em quando alguém folheia um livro, compara o retrato do autor na contracapa com a cara da realidade, ou pede um autógrafo, tira uma fotografia.
À minha direita uma senhora especializada em obras de etiqueta. À minha esquerda uma escritora americana diz que não aguenta tanto tempo sem fumar, e fuma às escondidas com uma satisfação de criança maliciosa, soprando o fumo para o soalho.
Um coleccionador não quer apenas um autógrafo, mas pede - não pede, exige! - também um desenho. Como não quero, nem sei o que desenhar, ele diz que nesse caso também não precisa do autógrafo. Assim seja.
As balaustradas dos andares superiores estão cheias de um povo que se contenta com olhar para baixo e ver tanto crâneo de literato.
- Diga-me uma coisa: aquelas peripécias dos seus contos aconteceram mesmo?
Santa inocência! Esperar que um escritor escreva a verdade, quando para ele o que mais conta é a arte. E na arte a verdade não passa de um acessório menor.
sábado, março 3
Prefácios
Um álbum de pintura. Quadros que nada me dizem, quanto mais os olho, mais nevoentas se me tornam as ideias. Sentindo-me tolo e, pior, hipócrita. Alinho frases sobre a harmonia dos coloridos do artista, a tensão que soube emprestar aos volumes, “o refinado tratamento do chiaroscuro, com reminiscências de Caravaggio e Rembrandt.”
Um livro de reportagens fotográficas. Retratos. Cenas de rua. Fotografia inexpressiva, de efeitos pretensiososos. Para não cair de desespero e frustação, apoio-me em Stieglitz, Kertész, Atget, Cartier-Bresson, ao mesmo tempo que olho de lado, involuntariamente receoso de ouvir já as gargalhadas que vão dar os que por acaso lerem as minhas asneiras.
O prefaciado, esse de certeza vai gostar. Cumprimentos, merecidos ou não, comparações com os grandes, tudo lhe será bálsamo. Virá depois citado nos anúncios e nos cartazes que evitarei olhar, para que não se reacenda a vergonha do meu fingimento.
sexta-feira, março 2
Entretém
Tenho, contudo, a suspeita de que esta memória é diferente daquela com que nasci e durante tantos anos me serviu. Não digo que me negue serviço ou se tenha tornado lenta, mas como que se lhe acrescentou uma dimensão crítica que antes não possuía.
Assim, quando por vezes, saudosista, quero relembrar uma data, uma conversa, é como se no íntimo uma voz se interpusesse, perguntando com rispidez que necessidade tenho desssas informações. Se me tornei incapaz de separar o trigo do joio, o importante do banal. Se para mim, em vez de uma função, o recordar passou a ser um jogo, um entretém.
quarta-feira, fevereiro 28
Diários
O meu, suponho, cabe mal nas categorias acima, pois menos que uma anotação de factos e pensamentos, o vejo, sobretudo, como um anseio de conversa.
A conversa que me imagino a ter com alguém de carne e osso, numa dessas amizades com empatias sincrónicas e harmonias duradouras. Amizades ideais que de certeza alguns ressentem e mantêm a vida inteira, mas que a mim não couberam. E nesta altura é improvável que me venham a caber, pois a idade - pelo menos no meu caso - à medida que aumenta a impaciência e o sentido crítico, vai reduzindo a capacidade de desculpar.
Que isto é meio caminho andado para a solidão, sei-o de há muito. Mas tanto quanto dela tenho experiência, também aprendi que os males da solidão são relativos, pois com livros e fantasia é que se criam mundos à medida do nosso sonho. O que não impede que o sonho seja faca de dois gumes: nas satisfações que dá pesa sempre a impossibilidade e, ao acordarmos dele, a ânsia do que se não possui ou se não alcançou dói ainda mais fundo.
sábado, fevereiro 24
Ingenuidade e igualdade
Outros, porém, vêem na simpatia que inesperadamente recebem uma tibieza e, talvez por instinto animal, logo em coisas diminutas dão mostras de nos quererem torcer, dominar.
De começo envolvem as suas manipulações em sorrisos e cortesias, mas à medida que avançam permitem-se umas gotas de veneno, uns toques de sarcasmo, um arranhar de unhas. Até que ousam passadas mais largas: escreveste isto, era melhor teres escrito aquilo; fizeste assim, devias ter feito assado... É o momento de travar e, porque sempre vão longe demais, da irremediável separação.
- Mas vocês eram amigos!
- Penso que não. A verdadeira amizade pressupõe ingenuidade e igualdade.
sexta-feira, fevereiro 23
Amar menos
- Sinto que o amo menos agora do que há três anos, quando voltámos para a Holanda.
Aceno compreensivo, mas no íntimo pergunto-me: entre amar menos e já não amar, qual é a diferença?
quinta-feira, fevereiro 15
Pessoa? Personagem?
As intermináveis esperas, o ar de artifício que toda aquela gente tem, uns disfarçados de turistas, outros a fingir de homens de negócios, de aventureiros, mais os papalvos, os aflitos, os de ar blasé... Espectáculo deprimente.
Entro no avião e raro escapo a um pensamento macabro: antes de me sentar, olho em volta, examino os rostos, as expressões, pergunto-me se me importaria morrer na companhia de semelhantes figuras.
A resposta é um terminante sim, e tem por consequência a reconfortante certeza de que Deus, para me chamar a si, escolherá outra ocasião e companheiros menos trombudos.
Um mês de ausência não é uma eternidade e, contudo, mudar em poucas horas de Estevais para Amsterdam, de uma casa para a outra, mudar de língua, de ambiente, hábitos, horários e obrigações, dá-me a impressão de que, pelo menos uma destas duas vidas que vivo não é real, mas um papel de teatro. Que numa delas não sou pessoa, apenas personagem. Alguém que, involuntariamente, de si mesmo cria um duplo e o vê agir sem compreender que razões o movem, ou a que fim se dirige.
quarta-feira, fevereiro 14
Dois momentos
Respondo-lhe, frouxo, que não está no meu poder rejuvenescer-me. Esqueci-me de acrescentar que cada pássaro canta conforme o bico que Deus lhe deu.
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Imre Kertész (Nobel 2002) entrevistado na TIME desta semana:
"What is your workday as a writer like? If you recorded the day in a life of a writer you would be disappointed. He makes coffee, he looks out the window, he does everything but write. But despite these everyday failures, something still comes out of it."
sábado, fevereiro 10
No século XX Anno Domini (1)
A nossa preocupação maior era a fragilidade do câmbio dos cruzeiros em dólares; as ocupações mais pesadas os jantares com o embaixador; os nossos pânicos as visitas da embaixatriz, que sabia de Arte e a quem, por turno, tínhamos de acompanhar aos antiquários e aos leilões.
Preguiçoso, desinteressado, considerando a minha estadia de pouca dura, perguntava de vez em quando aos colegas, que estavam aqui há anos e deviam saber:
- Mas afinal, como é a Holanda?
Eles, mais ingénuos do que eu supunha, explicavam, simplificando: as holandesas dividiam-se em duas categorias, as com quem se tinha ido para a cama e as que estavam para ir; os holandeses numa categoria única: a dos bananas. O país, uma maçada. A comida, um nojo.
Acrescentavam depois a Família Real - "a mais rica do mundo!"- a Shell, a Philips, a Unilever, os diques…
Temendo o frio, desconfiando da língua rebarbativa e do ar fechado dos passantes, financeiramente esfolado por senhorias que tinham elevado a arte de esfolar à suprema perfeição, limitava-me ao convívio dos colegas. Divertia-me com a basófia do chefe, contando como em Brasília o presidente Kubitschek lhe tinha batido no ombro, dizendo : ‘Éscuta, Jorge!...” Ria, como quando acompanhei o cônsul a um hotel para organizar uma festa, e ele perguntou ao homem que nos atendeu:
- Quem é você?
- Sou o recepcionista.
- Chame o director! Eu só falo de governo para governo!
Havia ainda o Cunha que, depois de vinte e cinco anos nas Águas e Esgotos de Petrópolis, tinha sido ‘empistolado’ para a embaixada em Lisboa. Mas o ‘pistolão’ enfraquecera com a mudança da política, e o seu calvário, arrastado por Madrid e Génova, ameaçava durar em Amsterdam.
Como o ministro não se condoía, nem o transferia para Lisboa, onde o esperava uma Rosa Simões, remetia ele, em cartas registadas e express, fotocópias dos atestados médicos que garantiam a veracidade de dois enfartes, acrescentando-lhes em maiúsculas a tinta vermelha: ‘V. Exa. ficará com a minha morte na consciência!’
Assim, no centro de Amsterdam, eu "vivia" de facto no Brasil, ocupando horas a escrever aos amigos, a rabiscar de longe a longe um relatório, a alinhavar romances que nunca terminaria, bebendo cafés sem conta, exausto quando por volta das cinco saía para a ronda obrigatória dos drinks, das recepções e dos jantares.
sexta-feira, fevereiro 9
Amigo perdido
Ele é o único cliente e está sentado a uma mesa no meio da sala, meio de costas para a rua, na mão o copo de cerveja que leva à boca. Atrás do balcão o proprietário enche outro copo.
Mais tarde hei-de vê-lo na praça, num caminhar incerto, o seu rosto com a cor arroxeada dos alcoólicos inveterados. Sob o braço segura a pasta com que se dá a ilusão de que nela guarda os processos que irá levar ao tribunal.
Foi brilhante, mas agora é advogado só de nome. Causas não tem. Quem o conhece acena de longe, evita a sua companhia. Solitário, violento, vai de café para café, de copo para copo, até que ao fim do dia, comatoso, se arrasta para casa. Triste sina para um amigo de quem tanto se esperava, e aos quarenta e oito anos se tornou um farrapo humano, um fantasma de si mesmo.
quinta-feira, fevereiro 8
terça-feira, fevereiro 6
Outro aniversário
É essa uma das poucas vantagens que a velhice tem: poder viajar no tempo. Não como o faz a juventude, com o privilégio de ansiar pelo futuro, mas ironicamente em marcha atrás. Recebendo lições de modéstia, deixando pelo caminho as certezas que o não eram, rindo de ter tomado a sério a palavra eternidade.
A caminho dos setenta. A idade que ambos os meus avós não alcançaram, e a dois passos da de meu pai quando faleceu. Contas que faço involuntariamente, e que são ao mesmo tempo temor e exorcismo, a busca de não sei que garantias de precária sobrevivência. A sopesar se me restam ainda cinco, dez, quinze anos, ou se amanhã - nunca hoje, sempre amanhã! - a Parca se canse de dobar o meu fio e o corte duma tesourada.
Que terá sido?
Encontrámo-nos depois por vezes numa rua, num café, ao acaso duma cerimónia. 'Há que tempos que não nos vemos!' Embrulham-se em desculpas frouxas sobre as andanças da vida, os afazeres, complicações. Mas a pergunta fica: ao que é que não correspondemos? O que é que nos quiseram dar ou queriam receber que nos escapou? O que é que não somos, e eles julgaram que éramos? O que é que em nós lhes meteu medo?
segunda-feira, fevereiro 5
Aniversário
Se o corpo ou o intelecto funcionassem mal, se a minha alma andasse desvairada, se um drama ou a miséria me ameaçassem, eu teria razões de queixa.
Como nada disso acontece, só tenho motivos de inquietação: o de ignorar donde venho, o de não saber quem sou, o dar-me conta de como o tempo de uma vida é um instante irrisório, a incerteza do que será o meu destino, o mistério do que fica para lá do fim.
Cigano
Poucos haverá de feições assim aristocráticas e um olhar que parece indiferente à hostilidade do mundo. A roupa também o não denuncia, porque da que lhe dão por esmola nas casas abastadas, ele escolhe infalivelmente a que, pela cor e o corte, o tornam quase elegante. Usa chapéu de aba larga debruado a couro, boas botas.
Mau grado tudo isso José Lindo é inegavelmente cigano, e o mais trágico de todos, pois vagueia sozinho desde que muitos anos atrás, por razões que nunca disse, a sua família e a tribo o expulsaram. Na nossa aldeia pára às semanas, talvez porque não precise de ir de porta em porta a pedir esmola, pois quando chega a hora há sempre uma mulher que lhe leva um prato de comida ao banco ou à soleira onde ele se senta amodorrado.
Dorme onde melhor lhe calha, ao ar livre, debaixo dos alpendres, nos palheiros; se o tempo fica mau abriga-se numa casa abandonada e acende lá uma fogueira.
A velhice e as agruras devem-no ter transtornado, com certeza a razão porque deixou de fazer os cestos com que ganhava alguma coisa. E pouco fala. Tem alturas em que nem sequer responde a quem lhe dá as boas horas.
domingo, fevereiro 4
Circo
- Não vá julgar que é como os de antigamente. Este é moderno. No princípio fazem um bocado de ginástica, mas depois abrem as goelas à música e ficam as gajas a cantar e a dançar. Meio nuas. Com um panito a tapar-lhes as vergonhas. Venha logo à noite e vai ver que é como na cidade.
Prefiro não ver. Quero guardar inteira a recordação de quando os saltimbancos vinham com uma caravana de burros carregados de atributos e, no mesmo lugar, espetavam os paus em que firmavam o trapézio. Depois saltavam, giravam, contorciam-se, tiravam dinheiro do nariz das pessoas, cuspiam fogo, faziam a pirâmide humana...
Não quero ver mulheres meio nuas a cantar e a dançar. O que nunca mais acontecerá, e eu gostaria de voltar a ver, era aquela menininha que teria então a minha idade e, gracilmente, erguia um arco no ar, por onde um cão saltava cada vez que ela lhe gritava: 'Allez, hop!'
Gondarém
Entro nele com a esperança sempre repetida de que, estando ali, verei um dia abrir-se de par em par as portas que me impedem de ver claro no meu passado. Esperança vã.
sábado, fevereiro 3
Heavy metal
Divago.
Desde a invenção do gramofone podemos ouvir mais concertos em dias, do que antes ouvia um músico durante a vida inteira. Mas que benesses nos vêm das imensas e esplêndidas possibilidades que entretanto criámos?
… Funk…Grunge…Hiphop… Heavy metal…
sexta-feira, fevereiro 2
Johnson
in Boswell's Life of Johnson
Pavilhão Chinês
Sento-me perto da porta, bom lugar para melhor me entreter com a colecção de bric-à-brac. Peço uma cerveja.
Pouca gente. De ar absorto, uma encarnação de pintor boémio fuma cachimbo, faz caretas de desdém, sopra o fumo para o tecto. Num canto da sala duas lésbicas. No canto oposto uma rapariga sueca bebe Campari e fuma. Digo rapariga, porque na idade a que cheguei toda a mulher com menos de quarenta anos é rapariga; e sueca, porque o loiro dos cabelos, as suas feições, o rosto, o corpo, a maneira desenvolta, e o Aftonbladet aberto sobre a mesa, razoavelmente confirmam a nacionalidade.
Olho distraído os cartazes, as vitrinas, o cubículo ao fundo donde vem o som de riso abafado. Um tilintar de copos.
A sueca vai-se embora. As lésbicas trocam carícias, indiferentes ao olhar zombeteiro do empregado. Uma delas, alta e magra, vestida com um masculino fato preto, gravata idem, cabeleira de azeviche, maquilhagem esbranquiçada, tem um ar de fantasma teatral. A companheira, rechonchuda e coquette, é do tipo sofredor.
Bebo outra cerveja. Dois alemães de meia idade espreitam à porta, arriscam uns passos na sala, olham em volta com o ar de quem teme ter entrado por engano num lugar de má nota, e desaparecem silenciosamente.
Pago e saio atrás deles. Parou de chover. Volto ao jardim.
quarta-feira, janeiro 31
A lei
Eu não tenho deus, não tenho missão, e quando cumpro a lei sinto-me quase sempre contrariado.
terça-feira, janeiro 30
Jesus está vivo!
Pedi-lhe que repetisse. E ele repetiu, mas de novo me escapou. Talvez quisesse perguntar o caminho. Atravessei a rua:
- Diga.
- Jesus está vivo!
- Hmm…
- Você com certeza não crê. Não tem cara de crente.
- Olhe que creio.
- Mas não vai à missa.
- Vou sim.
- Então até domingo.
- Até domingo.
A minha mulher não gostou de me ouvir dizer que era crente e ia à missa. Pareceu-lhe uma pouca-vergonha. Mas que fazer em semelhante caso? Levantar questões teológicas com um desconhecido, provavelmente transtornado? Acirrar-lhe o fundamentalismo, ou pior : a loucura? Com uma mentira inócua foi ele em paz, fiquei eu em paz.
segunda-feira, janeiro 29
Coincidências, recordações, lugares
Quatro pessoas. Três histórias.
Ele diz: - A minha vida decidiu-se numa tarde, em Janeiro de 91, em Zurique, no bar do hotel Bauer au Lac. Durante uma conversa entre dois amigos, a que assisti pelo simples acaso de lá ter entrado nesse momento, e a qual, inicialmente, nada tinha a ver comigo. Estranho, não é?
- Vai fazer quase dez anos - conta ela. - No Hotel Tivoli, em Lisboa. Ia deitar-me quando dei conta de que tinha esquecido um recado a um colega que também lá estava hospedado. Ainda me lembro do número do quarto, o 703. Liguei umas quantas vezes, mas como o telefone continuava ocupado, resolvi bater-lhe à porta. Ele veio abrir e, ainda a falar com o aparelho na mão, acenou-me para que entrasse. Se nesse instante me tivessem dito que, passado coisa de uma hora, o meu destino estava marcado, eu acharia uma tolice.
O casal sorri, hesita. A mulher acena-lhe. Finalmente é ele quem fala:
- Deve ter sido predestinação. Nós mal nos conhecíamos e da primeira vez fomos castos, trocámos um beijo. Na tarde seguinte encontrámo-nos no que então se chamava uma maison de rendez-vous. Suponho que a expressão e o fenómeno se acham ultrapassados, mas também é facto que isto aconteceu há séculos. Aí, nessa tarde, as nossas vidas levaram uma reviravolta definitiva. Lembro-me da rua e do número: Herengracht 341, em Amsterdam. Anos depois a casa tinha sido transformada em hotel. O quarto é fácil de reconhecer: fica no primeiro andar, é o único com varanda para o canal.
domingo, janeiro 28
Experiência
sábado, janeiro 27
O lixo da memória
Um elétrico vazio num fim de linha, em Lisboa. Dois homens numa esplanada. Uma bicicleta verde encostada à parede da estação de Haarlem. A balança de uma mercearia. A porta de uma garagem em Angoulême. Um coreto. Uma ferradura gasta caída num caminho pedregoso. A lâmina de um canivete... Será possível que recordações tão banais encerrem uma forma de mensagem? Existirá um lixo da memória impossível de incinerar?
sexta-feira, janeiro 26
O espírito do tempo
- Podes discordar, mas olha à tua volta. O escritor tem de se promover a si próprio, promover os seus livros, a sua imagem de marca. Não quero exagerar, mas a imagem do escritor tornou-se mais importante do que a qualidade daquilo que ele escreve. Essencial é que se mostre, participe, se distinga como personagem.
De facto assim é e ela tem razão. Cafés, tertúlias, as manifestações e os encontros, as amizades, os contactos, os jornais, as revistas literárias, a televisão : em todos esses lugares e meios o escritor deve estar presente a vender o seu peixe. Excentricidade no comportamento também ajuda.
Mas que fazer quando, como a mim, faltam as qualidades precisas? E que não faltassem, para assustar basta ver aqueles que, ano após ano de promoção, não conseguem vender um livro nem criar um nome e, em vez dos escritores e poetas que julgam ser, são simples figurantes nos shows patrocinados pelo espírito do tempo.
quinta-feira, janeiro 25
Heróis
Talvez porque morreram num momento em que a minha admiração era inabalável, a imagem dalguns deles permanece quase intocada. As estátuas que me fiz dos outros, expostas à passagem do tempo e à mudança do meu ver, foram aos poucos minguando em tamanho.
Hoje em dia ainda me vêm acessos de admiração, ainda me maravilho, mas sem ter quem me mostre o caminho, ou me conforte com a esperança de certezas, a jornada perdeu o mistério de antigamente. Também já não corro, ansioso por descobrir. Vou sozinho e a passo, com o sentimento de que os dias se repetem numa infinda monotonia.
quarta-feira, janeiro 24
Wrong dreams
No sonho desloco-me para paragens onde nada se acomoda aos padrões da realidade: nem as gentes, nem os animais, as plantas, a paisagem ou as circunstâncias. E contudo, mau grado os medos e a estranheza, nesse mundo deformado sinto-me mais completamente eu, mais alerta e senhor de mim, do que quando ao acordar me vejo de retorno ao mundo real.
A minha vida costumo dividi-la em antes e depois da Holanda. Os primeiros vinte e seis anos do antes foram indubitavelmente os mais ricos, os da aprendizagem de mim mesmo e do mundo, os das viagens, das descobertas, do enriquecimento do espírito - mas também anos infelizes.
Os anos do depois foram sobretudo de sedimentação. Sentimentos, conhecimentos, ideias, sensações, tudo se foi lentamente acamando na formação do eu adulto.
E porque me sei mais feliz agora do que o fui na juventude, ou melhor, porque a felicidade veio quando eu já desistira da esperança dela, tenho por vezes a impressão de que, por um desleixo do destino, a minha existência se desenrola às avessas. O que ardentemente desejei quando tudo me parecia uma ascensão, foi-me negado. O que em seguida recebi, e não considero pouco, veio tarde demais para que o soubesse e pudesse gozar em pleno. Assim, embora de mãos cheias, quando olho para a vida que até agora tive sinto-me the wrong man in the right place, at the right time, with the wrong dreams.
segunda-feira, janeiro 22
Boa notícia
Eu não lho tinha dito, para que, no caso do programa não ser transmitido, lhe evitar a desilusão. Mas alegrou-se ela, alegrou-se o povoado. Só que, de tão confundida com o ver-me inesperadamente, não foi capaz de ouvir tudo o que falei. Contaram-lho depois os vizinhos.
Todavia, como por milagre, ouviu perfeitamente que eu disse que queria ser enterrado na aldeia. E num inconsciente acesso de humor negro, acrescenta esta novidade: 'Por acaso andam a aumentar o cemitério'.
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(*) Quase centenária, continua em seu juízo, lê sem óculos.
Inveja
Invejo-os porque suponho neles uma força que não tenho, uma estabilidade do ser que não conheço. Mesmo os livros que escrevi não me dão a ideia de obra acabada, antes me parecem espasmos de um espírito que não sabe como exprimir a sua inquietude.
Orgulho
A do orgulho, por exemplo. Há o orgulho clássico de quem gerou um filho, plantou uma árvore ou escreveu um livro. O orgulho dos generais que venceram no campo de batalha e o orgulho dos que venceram na vida, dos que fizeram descobertas essenciais, dos que realizaram os seus sonhos. O orgulho dos heróis e dos capitães de indústria. O orgulho dos campiões, dos que aprenderam sozinhos a tocar trombone, dos especuladores, dos confeiteiros...
A senhora foi deputada. Boa ou má, competente ou nulidade, pouco interessa. O que me maravilha é a sua repetida afirmação de que se orgulha de que, no parlamento holandês, ninguém antes dela tenha proferido a palavra “cona”.
domingo, janeiro 21
O tempo de um Verão
Amámo-nos apaixonadamente esse Verão, mas a diferença social entre nós era tão grande que os pais, assustados, a mandaram para um internato longínquo, com freiras e disciplina.
Usando de artifícios ainda conseguimos trocar algumas cartas, mas logo nos demos conta de que uma paixão como a nossa não tinha futuro.
Depois o acaso fez com que um dia nos encontrássemos numa estação à espera do mesmo combóio e, durante as horas que viajámos juntos, voltámos a amar-nos apaixonadamente.
Quando nos despedimos não fizemos promessas nem chorámos lágrimas. Um último beijo, um último aceno, ela desceu para o cais e, como eu lhe tinha pedido, foi-se embora sem esperar pela partida do combóio que me levava para longe.
Recebi há pouco um cartão a anunciar o seu falecimento, mas a notícia não me chocou nem fez entristecer. Quem morreu foi a mulher casada, a mãe, a avó em que ela se tinha tornado e que não conheci. A Maria Luísa, amor de um Verão, esbelta, loira, rosto oval, olhos verde-esmeralda, continua a viver na minha lembrança.
sábado, janeiro 20
Cidadão supérfluo
O mundo também não se pode passar de religiões, pois só elas garantem a esperança - verdadeira ou falsa, pouco importa - de termos sempre à mão um último socorro, uma última possibilidade de indulto.
Eu, porém, sem convicção que me ajude a confiar nas instituições políticas, nem fé bastante que me embale com a existência do Além, vivo um pouco como a clássica rolha sobre a inconstância das águas: bóio calmamente aqui, sou atirado para acolá, paro, giro, cai-me a onda em cima, sopra-me a tempestade para longe, volto a boiar calmo.
Daí que consoante a hora e a disposição eu seja capaz de tudo justificar, desculpar, defender: as guerras, as violências dos regimes, a atracção das seitas, as desigualdades sociais, as consequências da opressão, as loucuras, os crimes. E de logo em seguida sentir contra tudo isso uma sincera revolta. Observo, mas não participo. Vou boiando. Tipo acabado do cidadão supérfluo.