Não sou, nem me lembro de ter sido de idolatrias, adulações ou adorações. Amores tive alguns. Poucos. Amizades, umas quantas. Conheço o respeito e a admiração, mas só bato palmas por rito social e nunca ninguém me viu ou verá aos pulos e aos gritos, agitando bandeiras ou erguendo o punho. A multidão num espectáculo de rock ou num estádio de futebol causa-me o estranho mal-estar que só os solitários e os individualistas conhecem. Uma manifestação na rua? Fujo. Uma fila de centenas de beatos – já as vi de milhares – à espera que abram as portas do museu para pasmarem diante da obra-prima? Fujo também.
Poderia continuar, mas paro aqui, porque estou certo que é em mim, não no resto do mundo, que qualquer coisa se desaparafusou.
No meu parecer o monólogo interior, talvez deva dizer o diálogo interior, é a mais agradável e segura das trocas de impressões.
Provavelmente discordará – questão de idade e temperamento – mas detenha-se um instante, recorde as conversas de ontem, as do fim-de-semana, as de Março, outras mais antigas. Em determinado momento todas descambaram para a banalidade e o pugilismo verbal, ou meteram por atalhos que não tinham a ver com o assunto. Pense bem. Que lhe ficou delas?
Oiça, é consigo. Sim, consigo. Tem você também daquelas manhãs em que, mau grado o azul do céu e o brilho do sol, tudo lhe parecem sombras?
De certeza tem. Eu tenho. Horas de contrariedade, longas horas a repisar o como foi, o que poderia ter sido, o que nunca é. Pensamentos que se entrechocam como ondas de temporal. Memória dos momentos negros, dos becos sem saída, temor dos precipícios em que outros já se despenharem. O que se perdeu e se teria recebido, não fosse a cobardia, o medo de arriscar.
Manhãs feias e de contradição. Manhãs que começam antes da aurora e se arrastam envoltas na fuligem do passado.
Oiça, digo que é consigo, mas é também comigo, com os que guardam no peito os gritos surdos da raiva e do desespero, e procuram alguém que os queira ouvir.
Oiça. Não faça caso. Desculpe. Desejo-lhe um dia bom.
1 – Disse alguém que "a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante." O mesmo vale para a leitura. Bom, péssimo, medíocre, banal, excepcional,, leia em abundância e de tudo: Camilo, Eça, Vieira, Guimarães Rosa, Bocage, folhetos medicinais, instruções para uso, anúncios, necrologias, nomes de ruas... No meu começo, aí pelos oito nove anos, foi-me de grande utilidade e deixou impressão duradoura a leitura do Regulamento Geral das Alfândegas (1928).
2 – Entre em transe. Se lhe parecer custoso tente atingir aquele estado segundo em que não se ouve a família, nem a televisão, nem os vizinhos, e em simultâneo tente esquecer. Esqueça a hipoteca e o talento de A., a fama de B., o êxito daquela besta que escreve mal e vende dezenas de milhar. Esqueça. Seja firme, esqueça, e escreva . Desânimo? Dor de cabeça? Náusea? Medo? Continue a escrever.
3 – Pegue num texto alheio, em português, de preferência moderno. Surpreenda-se com o uso e abuso da palavra "não". Encontrará o ditongo repetido em substantivos e formas verbais. Leia em voz alta e o mais provável é que lhe perguntem porque está a ladrar.
4 – Evite acessos poéticos de raiva e desespero. Guarde tudo o que escreve, mesmo o que lhe parece péssimo. Deixe passar meses. Releia. Constate que o seu juízo crítico não é aquele instrumento infalível de que tanto se orgulhava. Aqui e ali encontrará uma bela frase, uma descrição realmente poética, um bom diálogo.
Isto, porém, aplica-se somente ao texto acabado. Na feitura a regra é o corte sem piedade. Leia e releia, corte e volte a cortar. Por contas que em tempos fiz, em cada página que me parece pronta há três ou quatro de cortes, e quando a vejo impressa ainda descubro o que devia ter cortado.
5 – Diálogos. Arte bicuda, calcanhar de Aquiles de muita prosa. Há escritores que como que perdem a cabeça ao pôr os seus personagens a dialogar. São surdos, ignoram como se fala à sua volta, ou querem fazer chique e rebuscado, na ilusão de que na literatura, como em Cascais, tudo é gente da alta falando em mais-que-perfeitos e conjuntivos.
Ainda é delicado dizer estas coisas, mas já agora que toco em classes, os diálogos mais desastrados da literatura portuguesa encontram-se nos romances neo-realistas. O povo, ali, fala no tom dos cardeais de Júlio Dantas.
6 – Na boa prosa há ritmo, melodia, pausas, há crescendi e fortissimi (não se deve abusar destas mostras de saber, mas uma vez não são vezes), mal vai àquele que escreve ficção sem ser dotado de bom ouvido musical. Nunca se dará conta do mal que escreve, como ignora que canta desafinado.
7 – O leitor merece incondicionalmente o seu respeito. O leitor partilha consigo intimidades e momentos de emoção que esconde ou nega mesmo a outros que lhe estão próximos. Tenha isso em mente, ofereça-lhe o que tem de melhor.
8 – Não perca tempo a invejar a produção de fulano que, como se andasse grávido, todos os nove meses dá nascença a um livro. Escrever é paixão, fado, impulso que vem do mais fundo. Uma vez por outra traz benefícios, mas não é um comércio.
9 – Tenha presente: um escritor não é um saltimbanco. Por respeito a si próprio evite dar-se em espectáculo. Mesmo que tenha seguido um curso de dicção – seguiu? - recuseler prosa sua num palco. Os sádicos adoram, o resto do público aprecia pouco e isso nota-se na moleza das palmas.
10 – Dedicatórias impressas na primeira página? Nunca. Os amores morrem, as amizades perdem-se, chega sempre o tempo em que é doloroso o confronto com as palavras que exprimem sentimentos defuntos.
Continuo grato ao amigo a quem um dia quis dedicar um romance e ele, lendo as duas linhas da minha admiração, resmungou: "Isso é prosa do presidente da junta a dar boas-vindas ao presidente da câmara. Não ponhas."
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PS. Bem prega frei Tomás: eram quinze, mas no texto acima ainda nove vezes se repete o fatal "não".
Para mim este número da Pública é histórico e vou guardá-lo. Não pela tola da capa, mas pela novidade – novidade no meu caso – de um restaurante algures na Catalunha.
Caro que baste e snob de longas reservas, nesse lugar servem refeições que, além da satisfação do apetite, funcionam sobretudo como acessório emocional. Exemplo: uma infusão de terra húmida com goma de Xantana a acompanhar ostras, de modo que o cliente ressinta a comunhão muito catalã do mar com o monte e, ao comer, lhe venha à "memória um passeio por um bosque húmido onde acabou de chover."
Mas têm mais, pois, entre outras, preparam sobremesas com aromas citrinos que, combinados "com o leite e um creme de manteiga associam à ideia da infância." Esperam também "que o limão incuta uma sensação de energia que transporte o feliz comensal para mais um universo paralelo, desta vez marcado pela ternura."
Fumos de tabaco "que dão uma sabor incrível ao doce", sobremesas inspiradas nos perfumes de Gucci e Chanel...
Aqui chegado comecei a agoniar-me. Ocorreu-me que não demorará a abertrura do primeiro restaurante coprófago, onde, para avivar emoções e memórias, sirvam as ostras acompanhadas de uma infusão de merda.