"O príncipe travou-lhe o braço com autoridade e
levou-o para o restaurante, a chusma de empregados logo a rodeá-los, o
chefe-de-sala abrindo ele próprio o champanhe, inquirindo num sussurro se Sua Alteza ia desejar as ostras do costume.
Foi um martírio. O príncipe debicava com uma lentidão exasperante, saboreava
minuciosamente, e o jantar, em vez da refeição corrente que tinha esperado e
não lhe apetecia, fora um banquete elaborado e excessivo.
Às ostras seguiram-se entradas frias, entradas quentes, a sopa, o peixe, depois
carne, faisão de caça, o cesto dos queijos, o carrinho das sobremesas. Cada
prato acompanhado por um vinho diferente que o escanção provava com demora, aspirando
e remoendo antes de servir.
Finalmente vieram os conhaques, o café, os charutos que os criados tinham
previamente amornado à chama de velas e acendido com varinhas de cedro.
No início sentira-se estonteado de cansaço. Depois, com a comida e o álcool,
tomou-o uma moleza eufórica, respondeu amistosamente ao príncipe que queria
saber em detalhe da sua vida, da sua loja, da sua quinta em Sintra, da família, das aparições de
Fátima, das suas opiniões sobre a guerra, do interesse por Tolstoi nas escolas portuguesas. E quando ele propôs passarem
primeiro pela roleta, achou indelicado mostrar pressa.
– Perdi excessivamente nos últimos dias, mas como diz um antigo provérbio
russo: ...
O senhor Brandão não compreendeu, nem o príncipe traduziu, já tomado pelo
vício, alheado de tudo e todos, mandando trocar por fichas um modesto maço de
notas.
– As últimas.
Houve quem sorrisse. Formou-se um pequeno grupo que logo se desfez, porque as
paradas não eram espectaculares e a maneira nervosa como ele jogava tinha
criado à sua volta um mal-estar. Alguns jogadores mudaram ostensivamente de mesa, outros fizeram
alusões desagradáveis, houve os que pararam de jogar à espera de vê-lo
afastar-se.
Durante quase uma hora só teve lances infelizes e por fim, atirando as últimas
fichas, levantou-se sem esperar que a roda parasse, transfigurado, parecendo
não reconhecer o joalheiro que tinha ficado em pé atrás dele, e a quem fez
cambalear com um empurrão furioso. Mas logo o modo irritado se transformou em
sorriso:
– Monsieur Brandao, je m’excuse.
– Se Vossa Alteza agora tivesse a gentileza.
– Desculpe, mas não recordo.
– De me acompanhar ao escritório do Fonseca. Duas palavrinhas.
O russo olhou-o interdito, acendeu outro charuto e foi com ele."
...
in O Joalheiro