sexta-feira, agosto 13

Coisas do Fado (1)

 

(Texto para o número de Outubro de 1994 da revista neerlandesa 

 De Tweede Ronde)


                                             

       FADO DO FADO

 O fado pode ter tido a sua origem no canto com que os escra­vos trazidos do Congo acompanhavam o lundum, uma dança sensua­l. Pode descender de alguma melodia árabe, pois não lhe faltam as entonações plangentes. Talvez se descubra um dia ser herd­eiro das modinhas, importadas do Brasil no século 18, ou ter sim­plesmente nascido das canções lamentosas dos homens do mar. José Pinto de Carvalho (1858-1930), autor da única História do Fado exis­tente, escreveu nela em 1903 que "a gemedora música do fado lembra, vagamente, certos andante da música checa". Mais adiante cita um M.A. Lambertini, que num livro intitu­lado Chansons et instruments teria afirmado: 'O motivo princi­pal do allegretto da 7ª sinfonia de Beethoven, confiado pri­meiro aos altos e violoncelos e aos violinos depois, dá uma ideia aproximativa do fado, não só na divisão rítmica, mas ainda na forma da melodia.'

De pouco adiantam, porém, as especu­lações ousadas ou as inter­pre­tações absurdas: o dado que permanece é ser des­conhe­cida a verda­deira origem do fado. Curiosamente o mesmo acon­tece com a guitarra portugu­esa, instrumento que pela forma de certo modo se aparenta à mandolina, mas difere dela por ter não oito mas doze cordas, das quais nove são trinas e três bordões.

Quem canta o fado é tradicionalmente acompan­­hado por uma guitarra e uma viola, se bem que em tempos recentes se note uma tendência para fazer acompanhar o/a fadista por um maior número de instrumentos. Isso, que em nada aumen­ta ou diminui as qualidades dos intérpretes, é principal­mente ditado por razões de ordem comercial.

 

O grande impacto do fado na sociedade portuguesa deu-se em meados do século 19 com Maria Severa, prostituta a quem o talento de cantora, a ligação que teve com o marquês de Vimio­so e o mau destino, transformaram em ícone nacional.

Melodia lamuriosa sobre a paixão e o amor traído, e de início quase exclusivamente reservado à gente da noite, dos bas-fonds, da prostituição e das touradas, o fado não demorou a ganhar o país inteiro, sem distinção de camadas sociais. Cantavam-no as mulheres da rua e as condes­sas, os proxenetas, os burgueses, os pastores. Ouvia-se, como hoje se volta a ouvir, nas tabernas e nos salões.

Contudo, depois de atingir o período áureo da sua popula­ridade nas primeiras décadas deste século, tornando-se um dos meios preferidos para exprimir o muito português sentimento da saudade, o fado pouco a pouco foi perdendo em brilho. A sua popularidade, sobretudo devido à voz de Amália Rodrigues, manteve-se grande junto das camadas humildes da população, mas o escol da sociedade passou a dar preferência ao fado mais sofisticado que cantavam os estudantes de Coimbra.

O regime fascista desenvolveu alguns esforços para o assi­milar como canção nacional, tentando torná-la um elemento da sua propa­ganda. Mas, ou porque esses esforços tivessem sido insuficientes, ou devido à evolução da sociedade, a verdade é que a tentativa falhou e já na década de 60 o fado era um género musical que posi­tiva­mente caíra em des­graça. Os esquer­distas, rabiosos ou não, viam nele um símbolo do imperialismo e do colonialis­mo, en­quanto que os bem-pensan­tes o considera­vam como uma abjecta expressão dos sentimentos da plebe.

Os anos após a revolução de 74 viram o fado atingir o ponto mais baixo da sua popularidade e tornar-se um género de música desprezível, cuja existência se prolongava apenas nos estabelecimentos que de par com bailados supostamente folclóricos o serviam aos turistas como curiosidade nacional. A própria Amália Rodrigu­es, temendo justamente pela sua segu­rança nessa época agita­da, acabaria por se  refugiar no Bra­sil.

Mas os tempos mudam e a nostalgia conhece o vaivém dos balancés: ao mesmo tempo que a economia se recom­põe com a participação da União Europeia e o regime político inclina para a direita, assiste-se agora a uma revalorização social do fado. Mais ou menos desde o início da década actu­al, não somente é de novo permitido gostar dele e cantá-lo, mas tanto entre estudan­tes como entre o populacho, nas casas dos ricos e nas vielas, na rádio, na televisão, o fado retomou um lugar de primazia. Ele é de novo a expressão musical politica­mente correc­ta da saud­ade, da melancolia, das paixões não correspon­didas, e assume por fim o papel que o fascismo não conseguiu proporcio­nar-lhe: o de símbolo aceite de uma desagradável, na rea­lida­de pacóvia, forma de nacionalismo.

Com raízes profundas na alma do povo e, juntamente com a quase esquecida música folclórica, um dos raros meios simples, mas genuínos, de que este dispunha para exprimir as suas dores e anseios, o fado merecia um destino melhor.

Na minha infância, um tempo em que os aparelhos de rádio eram ainda raros, era comum haver nas casas uma guitar­­ra ou uma viola, ou mesmo ambos os instrumentos, como acontecia na nossa. Além do meu avô paterno, o meu pai e o único tio, serem razoáveis guitarristas, no largo em que morávamos as noites quentes eram quase sempre noites de fado. Sentados no que calhava os vizin­hos faziam roda aos toca­dores e por vezes, espon­ta­neamente, um ou outro levantava-se para cantar.

Recordo que o faziam mais depressa os homens que as mulhe­res, mas que estas de certo modo punham mais sentimento nas pala­vras e na melodia. Bem sei que não se tratava de pontos altos da ex­pressão musical, e todavia guardo dessas noites lem­branças que não somente me são queridas pelo inti­mismo, mas pela revelação das alegrias partilhadas.

O meu primeiro instrumento foi uma gaita de beiços, com a qual conseguia fazer uma razoável interpretação do fado corri­do, mas assim que os dedos me permitiram abarcar o braço da guit­arra, aí por volta dos oito ou nove anos, meu pai ensinou-me os primei­ros acordes. Durante sabe Deus quanto tempo consu­mi a pa­ciência da família, tocando o fado menor e repetindo incessantemente a popular quadra infantil que imitava o trinar das cordas:

Timterlim, ó Zé Manquim,

Timterlim, quem te mancou?

Timterlim, foi uma velha,

Timterlim, que aqui passou.

 

Vendo como tocavam os mais velhos e recebendo de vez em quando uma indicação de como posicionar os dedos para acordes mais com­plexos, pouco a pouco fui ganhando prática suficiente para que eles me aceitassem como tocador. Mas nessa altura nada de solos, só acompanhante à viola, actividade que embora fácil me dava uma intensa satisfação.

Lições sérias recebi-as mais tarde do António Fidalgo, amigo que poucos anos mais tinha do que eu, e do senhor Zé Cigano, um negociante de cavalos. Como guitarristas gozavam ambos duma fama que se estendia para além das aldeias de Trás-os-Montes, e das vezes que os ouvi nas festas acompanhados pelo Zézinho do senhor João, um genial tocador de viola, conheci emoções e entusi­asmos como não me lembro de ter ressentido mais tarde nas salas de concertos.

Nesses tempos antigos e simples em que, como já disse, o rádio era ainda uma curiosidade e o comércio estava longe de desco­brir o fado, as suas letras e melodias não nasciam somen­te nas tabernas mal afamadas de Lisboa, mas compunham-nas autores anónimos, relatando com elas crimes e casos extraor­dinários. Cantavam-nas depois nas ruas os grupos de ceguinhos, fenómeno popular e folclórico que, tanto quanto sei, não foi ainda estudado, embora até aos fins da década de quarenta tenham eles sido um valioso e eficiente veículo da história oral.

Como não podia deixar de acontecer na constante busca de filões que a caracteriza, nos últimos anos a televisão portu­gue­sa uniu-se ao turismo e ao comércio para explorar o fado. Assim, actual­mente, o governo subsidia os estabelecimen­tos onde os turistas travam conhecimento com a canção nacio­nal; são orga­nizados regularmente concursos para profissio­nais e amadores, com o atractivo de prémios pecuniários ou perspec­ti­vas de fazer carreira; e a televisão não somente apoia a organi­zação dessas iniciativas como lhes dá a cobertura publi­citária que as transforma em acontecimentos nacionais.

Uma vez que nasceu no povo e nele se desenvolveu, pare­cerá contraditório lamentar que a televisão acentue o carácter popular do fado. Acontece, porém, que a influência da enorme maqui­naria televisiva não se limita a acen­tuar, mas contribui para deturpar o que inicialmente havia de ingénua sinceridade nos que o tocavam e cantavam. Assim, embora aquele que hoje se ouve supere em qua­lidade musical as melodi­as singelas da minha infância, o fado como que perdeu o ele­mento que o tornava único: a alma. Produto comercial, usam-no para tudo o que renda: os es­pectácu­los e a publicidade, as cam­panhas políticas, os pseudos saraus artísticos. E, como já afirmei antes, aproveitam-no também para exacerbar o naciona­lismo com que as classes dirigentes portu­guesas tentam escon­der a sua incapacidade de governar decen­te­mente o país.

Isso seria o menos, seria apenas uma entre as muitas mano­bras e manipulações de­magógicas. Mas ­quando na televisão se ouvem cantar com trémulos na voz qua­dras como a que segue, não é só acanha­mento o que se sente, ganha-se a certeza de que o fado, o verdadeiro, está morto e enterrado.

Quando Deus se sente mal,

Põe-se no céu debruçado,

A olhar p'ra Portugal,

A ouvir cantar o fado.