(Texto para o número de Outubro de 1994 da revista neerlandesa
De Tweede Ronde)
FADO DO FADO
O fado pode ter tido a sua origem no canto com que os escravos trazidos do Congo acompanhavam o lundum, uma dança sensual. Pode descender de alguma melodia árabe, pois não lhe faltam as entonações plangentes. Talvez se descubra um dia ser herdeiro das modinhas, importadas do Brasil no século 18, ou ter simplesmente nascido das canções lamentosas dos homens do mar. José Pinto de Carvalho (1858-1930), autor da única História do Fado existente, escreveu nela em 1903 que "a gemedora música do fado lembra, vagamente, certos andante da música checa". Mais adiante cita um M.A. Lambertini, que num livro intitulado Chansons et instruments teria afirmado: 'O motivo principal do allegretto da 7ª sinfonia de Beethoven, confiado primeiro aos altos e violoncelos e aos violinos depois, dá uma ideia aproximativa do fado, não só na divisão rítmica, mas ainda na forma da melodia.'
De pouco adiantam, porém, as especulações ousadas ou as interpretações absurdas: o dado que permanece é ser desconhecida a verdadeira origem do fado. Curiosamente o mesmo acontece com a guitarra portuguesa, instrumento que pela forma de certo modo se aparenta à mandolina, mas difere dela por ter não oito mas doze cordas, das quais nove são trinas e três bordões.
Quem canta o fado é tradicionalmente acompanhado por uma guitarra e uma viola, se bem que em tempos recentes se note uma tendência para fazer acompanhar o/a fadista por um maior número de instrumentos. Isso, que em nada aumenta ou diminui as qualidades dos intérpretes, é principalmente ditado por razões de ordem comercial.
O grande impacto do fado na sociedade portuguesa deu-se em meados do século 19 com Maria Severa, prostituta a quem o talento de cantora, a ligação que teve com o marquês de Vimioso e o mau destino, transformaram em ícone nacional.
Melodia lamuriosa sobre a paixão e o amor traído, e de início quase exclusivamente reservado à gente da noite, dos bas-fonds, da prostituição e das touradas, o fado não demorou a ganhar o país inteiro, sem distinção de camadas sociais. Cantavam-no as mulheres da rua e as condessas, os proxenetas, os burgueses, os pastores. Ouvia-se, como hoje se volta a ouvir, nas tabernas e nos salões.
Contudo, depois de atingir o período áureo da sua popularidade nas primeiras décadas deste século, tornando-se um dos meios preferidos para exprimir o muito português sentimento da saudade, o fado pouco a pouco foi perdendo em brilho. A sua popularidade, sobretudo devido à voz de Amália Rodrigues, manteve-se grande junto das camadas humildes da população, mas o escol da sociedade passou a dar preferência ao fado mais sofisticado que cantavam os estudantes de Coimbra.
O regime fascista desenvolveu alguns esforços para o assimilar como canção nacional, tentando torná-la um elemento da sua propaganda. Mas, ou porque esses esforços tivessem sido insuficientes, ou devido à evolução da sociedade, a verdade é que a tentativa falhou e já na década de 60 o fado era um género musical que positivamente caíra em desgraça. Os esquerdistas, rabiosos ou não, viam nele um símbolo do imperialismo e do colonialismo, enquanto que os bem-pensantes o consideravam como uma abjecta expressão dos sentimentos da plebe.
Os anos após a revolução de 74 viram o fado atingir o ponto mais baixo da sua popularidade e tornar-se um género de música desprezível, cuja existência se prolongava apenas nos estabelecimentos que de par com bailados supostamente folclóricos o serviam aos turistas como curiosidade nacional. A própria Amália Rodrigues, temendo justamente pela sua segurança nessa época agitada, acabaria por se refugiar no Brasil.
Mas os tempos mudam e a nostalgia conhece o vaivém dos balancés: ao mesmo tempo que a economia se recompõe com a participação da União Europeia e o regime político inclina para a direita, assiste-se agora a uma revalorização social do fado. Mais ou menos desde o início da década actual, não somente é de novo permitido gostar dele e cantá-lo, mas tanto entre estudantes como entre o populacho, nas casas dos ricos e nas vielas, na rádio, na televisão, o fado retomou um lugar de primazia. Ele é de novo a expressão musical politicamente correcta da saudade, da melancolia, das paixões não correspondidas, e assume por fim o papel que o fascismo não conseguiu proporcionar-lhe: o de símbolo aceite de uma desagradável, na realidade pacóvia, forma de nacionalismo.
Com raízes profundas na alma do povo e, juntamente com a quase esquecida música folclórica, um dos raros meios simples, mas genuínos, de que este dispunha para exprimir as suas dores e anseios, o fado merecia um destino melhor.
Na minha infância, um tempo em que os aparelhos de rádio eram ainda raros, era comum haver nas casas uma guitarra ou uma viola, ou mesmo ambos os instrumentos, como acontecia na nossa. Além do meu avô paterno, o meu pai e o único tio, serem razoáveis guitarristas, no largo em que morávamos as noites quentes eram quase sempre noites de fado. Sentados no que calhava os vizinhos faziam roda aos tocadores e por vezes, espontaneamente, um ou outro levantava-se para cantar.
Recordo que o faziam mais depressa os homens que as mulheres, mas que estas de certo modo punham mais sentimento nas palavras e na melodia. Bem sei que não se tratava de pontos altos da expressão musical, e todavia guardo dessas noites lembranças que não somente me são queridas pelo intimismo, mas pela revelação das alegrias partilhadas.
O meu primeiro instrumento foi uma gaita de beiços, com a qual conseguia fazer uma razoável interpretação do fado corrido, mas assim que os dedos me permitiram abarcar o braço da guitarra, aí por volta dos oito ou nove anos, meu pai ensinou-me os primeiros acordes. Durante sabe Deus quanto tempo consumi a paciência da família, tocando o fado menor e repetindo incessantemente a popular quadra infantil que imitava o trinar das cordas:
Timterlim, ó Zé Manquim,
Timterlim, quem te mancou?
Timterlim, foi uma velha,
Timterlim, que aqui passou.
Vendo como tocavam os mais velhos e recebendo de vez em quando uma indicação de como posicionar os dedos para acordes mais complexos, pouco a pouco fui ganhando prática suficiente para que eles me aceitassem como tocador. Mas nessa altura nada de solos, só acompanhante à viola, actividade que embora fácil me dava uma intensa satisfação.
Lições sérias recebi-as mais tarde do António Fidalgo, amigo que poucos anos mais tinha do que eu, e do senhor Zé Cigano, um negociante de cavalos. Como guitarristas gozavam ambos duma fama que se estendia para além das aldeias de Trás-os-Montes, e das vezes que os ouvi nas festas acompanhados pelo Zézinho do senhor João, um genial tocador de viola, conheci emoções e entusiasmos como não me lembro de ter ressentido mais tarde nas salas de concertos.
Nesses tempos antigos e simples em que, como já disse, o rádio era ainda uma curiosidade e o comércio estava longe de descobrir o fado, as suas letras e melodias não nasciam somente nas tabernas mal afamadas de Lisboa, mas compunham-nas autores anónimos, relatando com elas crimes e casos extraordinários. Cantavam-nas depois nas ruas os grupos de ceguinhos, fenómeno popular e folclórico que, tanto quanto sei, não foi ainda estudado, embora até aos fins da década de quarenta tenham eles sido um valioso e eficiente veículo da história oral.
Como não podia deixar de acontecer na constante busca de filões que a caracteriza, nos últimos anos a televisão portuguesa uniu-se ao turismo e ao comércio para explorar o fado. Assim, actualmente, o governo subsidia os estabelecimentos onde os turistas travam conhecimento com a canção nacional; são organizados regularmente concursos para profissionais e amadores, com o atractivo de prémios pecuniários ou perspectivas de fazer carreira; e a televisão não somente apoia a organização dessas iniciativas como lhes dá a cobertura publicitária que as transforma em acontecimentos nacionais.
Uma vez que nasceu no povo e nele se desenvolveu, parecerá contraditório lamentar que a televisão acentue o carácter popular do fado. Acontece, porém, que a influência da enorme maquinaria televisiva não se limita a acentuar, mas contribui para deturpar o que inicialmente havia de ingénua sinceridade nos que o tocavam e cantavam. Assim, embora aquele que hoje se ouve supere em qualidade musical as melodias singelas da minha infância, o fado como que perdeu o elemento que o tornava único: a alma. Produto comercial, usam-no para tudo o que renda: os espectáculos e a publicidade, as campanhas políticas, os pseudos saraus artísticos. E, como já afirmei antes, aproveitam-no também para exacerbar o nacionalismo com que as classes dirigentes portuguesas tentam esconder a sua incapacidade de governar decentemente o país.
Isso seria o menos, seria apenas uma entre as muitas manobras e manipulações demagógicas. Mas quando na televisão se ouvem cantar com trémulos na voz quadras como a que segue, não é só acanhamento o que se sente, ganha-se a certeza de que o fado, o verdadeiro, está morto e enterrado.
Quando Deus se sente mal,
Põe-se no céu debruçado,
A olhar p'ra Portugal,
A ouvir cantar o fado.