"Com tanto melhoramento hoje será menos, nesse tempo a carreira da Eurolines levava duas noites e um dia. Quase sempre a dormir, desinteressado da vista, dos letreiros, ou de por onde iam, se paravam ou não, assombro só da primeira vez ao atravessar Paris, aquele mar de luzes, o fim do mundo de carros, em parte nenhuma sinal de gente.
Fosse ou viesse era igual o desarranjo, o sentimento de ameaça que nunca perdia e o levava a olhar em volta, temeroso, incapaz de acertar no porquê, incapaz também de esquecer as palavras, os rostos, as ocasiões.
Nesse tempo a fronteira tinha acabado, mas descia em Vilar Formoso, arranjara lá puta certa, desenfastiava-o ela do amargo de boca que trazia das que num ou noutro domingo, quase a rebentar, pronto o esvaziavam da langonha e cinquenta marcos, que por menos o não faziam, e a abrir a porta ele ainda a puxar as calças.
Ficava um dia, dois, a Raquel sabida em paparicos e na ginástica, pressa nenhuma de rever o estafermo, pedir-lhe contas, mostrasse para que tinha sido isto, aquilo, quem dera ordem de comprar o sofá, outro armário, um par de tabefes quando respondia torto ou se embaralhava na explicação.
Incapaz de safar a memória, em certas alturas perdia-se-lhe
a cabeça em fantasias, de que aquela não era a sua mas vida alheia, também surpreso
de ter filho, mal reparando no puto, uma sombra da mãe e que, estranheza ou
susto, com ele perdia a fala.
Acordou, deixa-se estar, a cabeça descaída no encosto do sofá, olhos fechados, a modorra no corpo. Tem a impressão de sair dum buraco. Há luz demais na sala, passa a mão pelo rosto e olha os móveis, como se tivesse de se certificar, mas sem compreender por que o faz, nem há quanto tempo está ali. Cortaram o som da televisão quando se foram deitar, mas se viam que estava a dormir não era preciso deixar tudo aceso.
Dobra-se, aguarda que o corpo emperrado se ajeite e sinta menos a dor nas costas. Apoia-se no sofá, hesitando se apaga e vai prà cama ou fica um bocado, vontade pouca tem de como nas mais noites magicar sobre isto e aquilo, trazer à lembrança o que foi, o que não foi, o que fez, o que devia ter feito, a sarabanda em que perde o juízo, e às tantas, para não cair em perdição, pega no carro e larga para o monte.
O que agora, por sorte, não é o caso. Vai à cozinha buscar uma cerveja, um instante preso aos ruídos do quintal, ao das tábuas do soalho que o calor faz estalar.
Podia ser o soalho, mas não é, fica à escuta, precisão nenhuma de ir mais adiante, que dali também ouve. Estão na foda.
Abafa o riso, dizendo-se que tem de ser ela por cima, o "Bolota" não se mexe e com aquele peso quebrava-lhe os ossos.
Tira a garrafa do frigorífico, volta à sala, bebe distraído, resmungando para o ecrã que aquela merda nunca mais acaba, um maricas a cantar fininho, duas tipas de mamas ao léu a mandar beijinhos e a sacudir o rabo.
Muda de canal. Desde que estão com ele e tenha ouvido, só três, quatro se tanto. Mas sejam seis, que sejam dez. Em meio ano. É de homem? Com uma tipa que anda mesmo a pedi-lo? Que se calhar já lhos pôs?
Ó "Bolotinha", um dia destes acordas com uma galhadura que nem pela porta da igreja entras!
Segura a cerveja pousada no joelho, esquecido de beber, arrastado pela fantasia que uma ou outra vez repete, a da Isaura que se despe e sobe para a cama, fingindo que o não vê, ele a apalpar o tesão, mas sem mostras de querer, encostado ao guarda-vestidos a acabar o cigarro.
Coisas que vêm sem que saiba donde ou porquê, nem lhe causa espécie que seja a nora, às vezes é alguma no café, ou que vai a passar.
Com a Raquel também, mas isso mais no princípio de conhecê-la, as férias ainda longe e querendo poupar os marcos. Nem precisava de fechar os olhos, vinha-se mal a imaginava naquelas pantominas, a dançar ou de quatro, a acirrá-lo de cadela no cio.
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in O Meças -Quetzal, 2016