sábado, agosto 14

Coisas do Fado (2)

                                                 Ó tempo, volta pra trás

Palestra na Universidade de Njmegen em 13 de Fevereiro de 1967

 

Que eu saiba não há definição do fado, pelo menos definição que satisfaça. Considerá-lo simplesmente como canção, é pouco. Desprezá-lo, com o sorriso de quem está acima das coisas do comum, é desconhecer as raízes que criou na alma portuguesa. Quem nele vê apenas o choradinho, a lamúria, peca por excesso igual ao de quem faz do fado a única expressão autêntica do nosso Povo.

Um amigo meu escreveu algures que o fado é "o drama duma alma que anda à procura dum destino sublimado que perdeu, conta-nos a faceta ansiosa da vida recalcada dum Povo. É uma crónica popular e musicada ao gosto lírico-dramático da gente simples."

É isso, e mais que isso. É menos também. Ao mesmo tempo o fado é vigarice, indústria, chamariz turístico como o flamenco, é ganha-pão de ceguinhos que contam crimes e desonras. Na Televisão e na Rádio servem-no sem sal, fazem rimar alma minha com capelinha, amor com dor, e como a guitarra lhes parece humilde tocam-no em orquestras, tiram-lhe o que pode ter de sentimento e vestem-no com trajes domingueiros que lhe assentam mal.

Origens ninguém lhas conhece. Nasceu de pais incógnitos. Há quem pretenda que na batalha de Alcácer-Kibir, em 1578, os portugueses deixaram em campo 50.000 homens e 15.000 guitarras. Outros dizem, talvez com mais acerto, que o fado surgiu em Lisboa por volta de 1820. Importa isso menos do que saber que nasceu entre o povo e lhe pertence.

Não era cantiga de salão, como hoje, cantavam-no os faias, as mulheres da vida, interpretando – nas palavras do conde de Sabugosa – "as tristezas de destinos irremediavelmente sujeitos a um poder misterioso e oculto, simpático às grandes desgraças inevitáveis: a Fatalidade, o Fado."

Mas o fado, cantiga de viela, não tardou a ganhar galões. Também em Lisboa, e 1820, nascia a Severa, figura lendária que iria morrer vinte e cinco anos mais tarde, "apoplética, sem sacramentos…" segundo consta no registo de óbito – mas que em tão curto prazo de tempo elevou o fado a alturas de importância nacional.

O talento vinha-lhe da mãe, Ana Gertrudes Severa, a "Barbuda", e desta sabe-se que "era mulher de faca na liga, cabelinho na venta e língua de prata, trigueira e mal encarada, um estafermo", mas também "fadista que podia pedir meças às mais decididas", e que com certeza ensinou a arte à filha.

A notabilidade da Severa passou rapidamente das tabernas para a rua, e dentro em pouco tinha deixado os amantes de ocasião, para "ficar por conta" do conde Vimioso, que às vezes a ia  buscar de sege para que cantasse no seu palacete, paixão que mais tarde deu "O fado da Severa", recolhido por Teófilo Braga e a que pertencem as quadras seguintes:

O conde Vimioso

Um duro golpe sofreu,

Quando lhe foram dizer:

Tua Severa morreu!

 

Já nesse reino celeste

Com tua banza na mão

Farás dos anjos fadistas

Porás tudo em confusão.

 

Até o próprio São Pedro

À porta do Céu sentado,

Ao ver entrar a Severa

Bateu e cantou o fado.

 

Entretém de fidalgos, lamento de rameiras, o fado soldou-se à alma popular, o povo encontrou nele a possibilidade de dar expressão àquilo que sente sem entender. A saudade e a insatisfação, o "querer diferente, querer o que não se alcança, suspirar pelo que se perdeu" encontram nas quadras do fado um estojo melhor do que aqueles, complicados, em que às vezes os encerram os filósofos.

Meio sáculo após a morte da Severa, Júlio Dantas escolheu-lhe o nome para título do seu romance e do drama que dele tirou.

Êxito enorme, milhares de representações, e logo no ano seguinte, 1902, surgi a "História do Fado", de Pinto de Carvalho, detalhando o que se pôde apurar das suas origens, situando-as, como antes disse ao redor de 1820.

Entretanto, numa ceia histórica oferecida pelo duque de Lafões em 1907, para "consagração da guitarra da Severa" e à qual assistiu a fina-flor lisboeta, quando chegou a hora dos brindes D. Caetano de Bragança fez a apologia "dessa música tão genuinamente portuguesa, cujo som dolente e caricioso embalava até os marinheiros que, tripulando os galeões lusitanos, iam levar o bom nome da nossa terra aos confins do mundo."

Nem mais nem menos. E vá de acasalar o fado com os Descobrimentos, dando-lhe assim o brilho heróico que ainda não tinha e justificando ao mesmo tempo a balela das guitarras de Alcácer -Kibir.

Popular e anónimo, o fado não se dá com brasões. Levá-lo aos palácios, tirá-lo da rua, da  taberna, enfeitá-lo com pretensões que nunca teve, é castrá-lo. Cantado pelos estudantes de Coimbra, a sua irritante melopeia soa falso. A Amália em cabarets de luxo é mistificação. Os turistas ouvem-no agora em Lisboa, em tabernas com ar condicionado, violando entre outras a regra primária do silêncio, o silêncio necessário para que a alma, ensimesmada, sofra.

Mas, perguntarão, para que há-de sofrer quem foi para gozar? Assim é, na verdade, mas o fado ao natural é dor-prazer, compreende-o quem ao escutá-lo "de si ouve alguma coisa, ou de vidas que conhece".

Em 1909 António Arroio atacou-o, dizendo que "exprime o estado de inércia e de inferioridade sentimental em que o nosso País está mergulhado há muitos anos". E Fialho de Almeida, azedo como sempre, exagerado, chamou-lhe "um canto de criminais, uma chorosa elegia da taberna, cárcere e alcouce."

Quando há poucos anos a Rainha de Inglaterra visitou Portugal, o Governo proporcionou-lhe uma sessão de fados, onde cantou Maria Teresa de Noronha, mulher fidalga, casada com o Conde de Sabrosa, um dos melhores guitarristas portugueses, honrando o marido e a mulher de pertencerem  "a uma velha linhagem de fidalgos-fadistas."

Há aqui uma aparente mistura de palácio e viela que, se quadra ao fado quadra menos à fidalguia, pois Pinto de Carvalho descreveu assim o fadista: "minado de taras, avariado pela bebidas fortes e pelas maleitas secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado (?) e os ossos esponjados em mercúrio, é um produto heteromorfo de todo o vício, atinge a perfeição ideal do ignóbil."

Mas o fado pode bem com insultos e críticas, e as más  -  como as nobres – frequentações que por vezes lhe impõem não afectam a sua essência.

Desobediente por natureza, o português é um cordeiro quando ouve trinar guitarras. A melodia corporiza a sua dor, os anseios, as alegrias, as lágrimas saem-lhe tanto dos olhos como do coração, são do presente, do passado, chora até as que bem podia guardar para mais tarde.

O fado, porém, regala-se com os extremos, o impossível, mistura a nostalgia com a resignação, pede, tem uma "Avé Maria fadista" e se a Virgem não lhe acode torna-se pagão e grita: "Ó tempo, volta p'ra trás!" Sem esperança.