domingo, agosto 29

As palavras voam, a escrita fica

 

Verba volant, script manent, as palavras voam, a escrita fica, é sabedoria latina para levar a sério, só que são muitos e neles me incluo, os que por descaso ou preguiça encolhem os ombros à justeza do provérbio.

Comecei a escrever cartas aí por volta dos doze anos, vício que teve um fim abrupto com a chegada da internet, o que não lamento nem me deixou saudades. Primeiro, porque sendo um vício, tinha exigências que além de transtornarem o meu dia-a-dia, muitas vezes contribuíam para um sentimento de culpa, pois nem a pontualidade a responder era virtude que me sobrasse, como também por preguiça ou de tanto adiar, em vez de reagir deixava crescer em mim uma injustificada irritação, como se aquele a quem devia resposta fosse culpado do meu desleixo.

Depois havia ainda os que, por lhes ter respondido, interpretavam esse gesto de cortesia como razão bastante para dar começo ao que parecia uma troca de amabilidades, mas em breve desandava numa, nem sempre velada, exigência de confissões e intimismo que em casos extremos levava a atitudes de má-criação.

Actualmente são muito raras as cartas que escrevo, e poucas, quase sempre oficiais as que recebo, mas tempos atrás o antigo fenómeno da correspondência particular veio inesperadamente ao meu encontro, não sob a forma de um envelope com morada e remetente, mas o e-mail de um desconhecido, anunciando que no espólio de sua mãe, falecida em Abril, encontrara duas cartas minhas, datadas de Outubro de 1966, teria muito gosto de mas entregar em mãos, escolhesse eu o dia e o local.

Dá-se agora o caso de que o nome da falecida nada me dizia, como também não era excessiva a curiosidade que me despertava o conteúdo de uma correspondência de há mais de meio século, de modo que juntando o desinteresse ao desleixo esqueci a proposta. Em má hora o fiz, porque o cavalheiro inesperadamente voltou ao assunto, mas dando de barato as gentilezas e salamaleques anteriores entrou a ameaçar, não viesse eu depois queixar-me do escândalo ou acusá-lo de o não ter avisado.

Como não sou de medos e possuo alguma experiência em lidar com tarados, dei rédea larga, aconselhando o cujo que fosse por diante, da minha parte mandaria eu rezar uma missa por alma da falecida.

O inesperado desfecho dá prova de que embora me encontre ainda neste mundo já deixei de funcionar nele. É que não havia cartas, cavalheiro, ameaças, nem mãe falecida, tinha sido  gracinha duma madame que assim se diverte e arranja conteúdo para o Face.