"Segunda-feira, 12 de Dezembro, 1994 - As muitas guerras ocorridas ao longo dos últimos sessenta e quatro anos da minha vida sempre me afectaram, e jamais consegui permanecer indiferente aos horrores, às misérias ou aos sofrimentos por elas causados.
Um sentimento de euforia vitoriosa conheci-o uma única vez, ao terminar a Segunda Guerra Mundial, mas a paz que eu julgava iria ficar para a eternidade, pouco mais durou que dias. E o rosário dos sofrimentos e das mortes inúteis continuou com a Coreia, o Vietname, as muitas guerras coloniais, as guerras civis, as lutas religiosas, os ajustes de contas em que os governantes de países ditos civilizados mostram como é ténue o verniz da civilização.
A guerra na antiga Jugoslávia causou o que eu pouco teria considerado impossível: passado o primeiro choque deixou-me incompreensivelmente - talvez fosse mais acertado se dissesse perigosamente - apático e indiferente. É certo que o sofrimento das pessoas continua a tocar-me, mas pela primeira vez sinto-me desinteressado de saber quem luta contra quem e porquê, fatigam-me as subtilezas dos mediadores, enojam-me os intelectuais que viajam para Sarajevo a polir a sua imagem pública.
Contudo, talvez os acontecimentos me tenham afectado mais fundo do que julgo, e bem pode ser que a minha indiferença seja apenas a capa com que escondo o temor a que não quero sucumbir: o de viver num mundo que sentenciosamente condena os horrores passados do Holocausto, mas de braços cruzados permite hoje os horrores da purificação étnica.
Sim, talvez eu seja menos indiferente do que a mim próprio quero confessar. Mas sentir-me-ia mais feliz se em vez de medo eu tivesse, como antigamente, convicção bastante para gritar a minha revolta."
in Tempo Contado - Quetzal, 2010
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Hoje, 12 de Dezembro de 2020, se gritar a minha revolta de nada adianta e corro o risco de ser um contra uma imensa maioria de candidatos à escravatura, a quem basta meter medo para que se ajoelhem, curvem o cachaço e sorriam agradecidos, porque a Morte, a que vem de túnica preta e foice na mão nunca os incomodará, nem hoje nem amanhã nem depois, e se ela por acaso lhes bater à porta logo lhe mostrarão a picadela da vacina, salvo-conduto para uma vida eterna de felicidade e segurança.