Amigos, amizades, com as mesmas palavras que usamos para os velhos amigos e as amizades passadas, falamos de amigos novos, amizades novas. Depois, nas horas de reflexão e como que envergonhados, damo-nos conta de que passado certo momento da vida se torna quase impossível criar amizades. Nenhum novo amigo acordará em nós a fraternidade de que fomos capazes aos vinte anos. Nenhuma amizade voltará a ser tão absoluta como a que ressentimos nas cerimónias secretas da adolescência, fazendo lanhos nos braços para misturar o sangue e jurar que nos tornávamos irmãos para sempre. As palavras são as mesmas, mas os sentimentos diluem-se. No melhor dos casos amizade passa a ser sinónimo de boas relações e aos novos amigos não pedimos juramentos de sangue, já nos contentamos se possuem boas maneiras, alguma decência. A cortesia passageira toma o lugar do que foi exaltação, do que parecia eterno. Os encontros deixam ser espontâneos, rumorosos, marcados por beijos e abraços: assentam-se na agenda, começam e acabam pelo aperto de mão, o gesto tradicional para provar que se não está armado.
Dos amigos da juventude resta-me um. Os outros desapareceram no remoinho da vida, de alguns de que ainda recordo o nome não lembro as feições, ou vice-versa. Por vezes, com saudade, sobe em mim o desejo de saber por que caminhos se perderam ou salvaram. Que será feito de Raymond? Onde ficou o Habib? Que destino coube ao Jorge? Onde viverá a Helena? E a Teresa? Um ambicionava o Nobel (da Física), outro contentava-se com vir um dia a desenhar como Picasso. Havia os melancólicos que escreviam poesia e os práticos que estudavam Medicina. Os aventurosos que fumavam haxixe, se envolviam em capas e adiavam sem fim a sua partida para o Levante. Gérard dançava nas Folies Bergère. Kathleen, bela e secreta, era a rainha incontestada do nosso grupo, a paixão de todos, aquela com quem se sonhava e se sabia inacessível. Os românticos dedicavam-lhe sonetos onde sempre havia referências às gaitas-de-foles, aos nevoeiros e aos lochs da sua Escócia natal. E ela ria. Ou cantava então em gaélico baladas que não compreendíamos, mas nos tornavam estranhamente melancólicos. De súbito, sem aviso nem despedidas, Kathleen desapareceu. Afirmavam alguns que ela, provavelmente filha de lorde, tinha voltado à Escócia para retomar uma vida aristocrática. Eu e outros, que a conhecíamos melhor, suspeitávamos de que tivesse partido para Marraquexe. Mas porquê Marraquexe? – perguntavam os incrédulos. Porque mais de uma vez a tínhamos ouvido jurar que no dia em que no seu rosto descobrisse uma ruga, ou notasse no seu corpo um primeiro sinal de velhice, não hesitaria em se suicidar. Mas não se asfixiaria com gás num qualquer quarto anónimo de Paris, nem era sua intenção afogar-se na água gélida dum loch. Não. Chegado o momento fatal partiria para Marraquexe. E lá, depois de percorrer uma última vez as Kissarias, o souk el Kebir, o souk Larzaf, o souk Smarine, de se demorar na praça Jemaa el Fna, voltaria ao pequeno hotel donde se avistava o minarete da mesquita de Ben Youssef. Então, à hora em que o sol poente espalha sobre a cidade uma poeira de ouro, abriria as veias, para morrer com a certeza de que o seu corpo não tinha sido tocado pela imperfeição. Aquilo parecia-nos um comportamento superior, cheio de verdadeiro drama, elevava-a muito acima dos poetas românticos que contraíam tuberculose para que se lhes aguçasse a sensibilidade. Creio mesmo que foi devido a essa admiração que nenhum de nós jamais se interessou em averiguar se ela realmente se tinha ou não suicidado.
Faz poucos dias, num desses momentos em que amodorrados pelo tempo chuvoso e o mau humor pedimos entretimento à televisão, vi por acaso um programa culinário da BBC. Uma mulher entrada em anos debruçara-se sobre uma caçarola onde fervia um molho, e no momento em que ela ergueu o rosto o meu pasmo não conheceu limites: Kathleen! Com cara de avó, mas inegavelmente a Kathleen da minha juventude! Ou não seria? Durante minutos deixei que a minha dúvida perdurasse, mas depois, num reflexo, antes de o programa acabar e de aparecerem no ecrã os nomes dos participantes, desliguei o aparelho. Provavelmente não me será dado fazer novos amigos, mas para quê ressuscitar as amizades perdidas?
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in Mazagran - Quetzal, 2012