Ipameri, uns vinte quilómetros a sul de Brasília, hoje provavelmente tem arranha-céus, discotecas, poluição e os confortos e desconfortos que marcam a vida dos nossos dias. No início dos anos cinquenta, quando a capital brasileira existia apenas como vago plano na mente do futuro presidente Kubitschek, Ipameri era uma vilória sonolenta – a verdade obriga a usar o lugar-comum – ponto de passagem numa ruinosa estrada que por vezes servia de desvio caprichoso às carreiras que ligavam o Mato Grosso com o Rio e São Paulo. Carreiras que nesse tempo não conheciam o conforto do ar condicionado e percorriam 1000 km em cerca de uma semana, em vez das 18 horas actuais. Fora dos percalços, atrasos, tempestades e eixos quebrados, o que criava um ambiente de real solidariedade entre os passageiros, o motorista e o próprio veículo – ao fim da viagem a gente despedia-se deles com infinita saudade – havia o sentimento de aventura, o inesperado de certas etapas, o sorriso a que obrigavam os nomes de povoações que, por vezes, não eram mais que umas quantas casas em ruína ao longo da estrada poeirenta. Quem olhar o mapa encontrará por ali Orizona, Pires do Rio, Mossâmedes, uma Nerópolis que, tirante o topónimo, em nada se relaciona com o imperador romano.
Deus sabe ainda, mas eu quero esquecer, o que me levou
por esses ermos a caminho de Porto Velho, na margem sul do majestoso rio
Madeira, com intenção de depois alcançar Manoa na fronteira com a Bolívia, dois
dias de barco a contracorrente. A última paragem da carreira fora Paracatu e,
passada Cristalina, o motorista virou para sul, com alguma surpresa para os
passageiros que julgavam poder continuar directamente para Goiânia. Vamos levar
meu compadre direitinho a casa – explicou ele com um largo sorriso. O compadre
tinha entrado em Belo Horizonte. Homem de cinquenta ou mais, vestido de linho
branco, pasta debaixo do braço, sentara-se ao meu lado no último lugar livre,
desejando-me cortêsmente boa-tarde. Quando lhe retornei a saudação o seu rosto
tomou um ar tão caloroso que me pareceu necessário dizer qualquer coisa, mas
ele com um gesto interrompeu-me:Não diga! Quero adivinhar! Português? Sim, sou.
Eu sabia! Ouvi logo! Boa-tarde! A mesma palavra, mas com jeito tão diferente,
outra pronúncia, outra música! Mas...Não havia mas nenhum! Eu não compreendia!
Ele exultava por me ter encontrado! Portugal e os portugueses eram a sua
paixão! Demóstenes Cristino, professor primário em Ipameri –disse, apertando
afectuosamente a minha mão entre as suas. Foi depois, durante horas, uma
torrente de louvores ao país e à gente que ele infelizmente não conhecia, se
bem que um dia esperasse fazer «uma peregrinação a essa maravilhosa terra a que
nos prendem laços atávicos». Eu, patrioticamente, fazia gestos de
agradecimento. O grande Eça, o grande Camões, o extraordinário, inigualável Vieira
que, por ter vivido no Brasil, era «duplamente nosso». De todos possuía ele a
obra completa. A todos lia incessantemente, orgulhando-se de poder recitar de
cor inúmeros trechos dos seus favoritos. E favoritos eram todos eles! Se eu
dava licença queria-me mostrar... Pôs os óculos, abriu a pasta, rebuscou, tirou
de lá um recorte de jornal amarelado pelo tempo. Um poema. «A Raça» – anunciou,
desdobrando o papel. E apontando o nome do autor: – Demóstenes Cristino. Eu próprio,
como já disse. Estendi a mão para pegar o papel, mas a intenção dele era que
todos ouvissem e, levantando-se, explicou em voz alta que ia declamar a sua
homenagem a Portugal. Pode ser ilusão agora, ao recontar, mas estou quase certo
de que o motorista abrandou a marcha. Depois houve aplausos. Gritos de vivas. Abraçámo-nos.
Quando lhe pedi para copiar os versos, ele entregou-me generosamente o recorte.
Dava-mo. Só tinha mais um exemplar, disse, mas eram raras e excepcionais as ocasiões
como esta. O motorista travou. Tínhamos chegado a Ipameri.
A RAÇA - Demóstenes Cristino
O Brasileiro traz dentro de si
Um Português, um Negro e um Índio guarani.
O Luso deu-lhe a fibra audaz, arrojadiça
E a fidalguia própria dessa raça.
O bugre a natureza apática, a preguiça,
O amor à pesca, a inclinação à caça.
No excesso de carinhos e de zelos,
Reflete do africano o doce coração
E, às vezes, dos cabelos, aquela permanente ondulação.
Em harmonia vivem sempre os três;
Enquanto o negro bebe e o guarani batalha,
O pobre português trabalha.
Mas ai! Se no esplendor da graça,
Quebrando as ancas em lascivo jogo,
Uma morena passa:
O negro dança,
O bugre pega fogo,
E o português... avança!
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in Mazagran -Quetzal, 2012