quarta-feira, novembro 25

O prazer da viagem

 

Alguns visitantes deste blog vêm aqui há anos, como também há os que o frequentam de longe a longe e os que por acaso o encontram e entram nele para uma espreitadela. Seja como for, à maneira de lojista com comércio de porta aberta, sinto a obrigação de não lhes desfalcar o interesse ou a curiosidade e faço quanto posso para não os decepcionar, alinhavando nacos de prosa o melhor que posso. Infelizmente nem sempre a cabeça ajuda ou a disposição está para aí virada, mas pior são os  dias de morrinha como hoje e este nevoeiro, boa desculpa para a preguiça. Pesco então este ou aquele texto, para que quem entrou aqui não vá embora com as mãos a abanar.

 

O prazer da viagem

 

"Viajei, tão freneticamente que durante algum tempo viajar pareceu ser o único fito da minha vida. Viajei à descoberta de lugares e gentes, apressado, insatisfeito, movido por um insaciável desejo de muito ver e muito sentir. A minha primeira grande viagem levou-me a Vigo, a uns setenta quilómetros de casa. Escrevo grande sem ironia. O atravessar clandestino e no escuro a fronteira do rio Minho, com um barqueiro que, por causa dos guardas, tinha embrulhado os remos em panos para não fazer ruído, emprestava à viagem um gosto forte de perigo.Agachados ambos num canavial, à espera dum transporte que demorava, ouvindo no caminho as passadas da patrulha da Guardia Civil, acrescentava ao perigo da viagem um medo genuíno. O fedor a peixe do camião que nos levou, o cheiro peculiar dos cigarros do chofer, o esplendor da estrada que segue primeiro ao longo do rio até La Guardia e depois, virando para norte, vai sempre junto ao mar até Vigo, tudo isso ficou impresso para o resto da vida. Primeira grande viagem, primeira grande aventura. Eu tinha dezassete anos e aquele não acabar de gigantescas ondas atlânticas, a coroa rochosa de montes como nunca vira, azulados na distância, o incessante mudar da paisagem a cada volta de estrada, confirmavam a minha suspeita de que o mundo era imenso e imensamente belo. Durante noites reci tei os nomes sonoros das terras por onde tinha passado, certo de que com esse encantamento atrairia viagens futuras: Tomiño, Goián, Tabagón, La Guardia, Sanxián, Arrabal, Villadesus, Baredo, Baiona, Ramallosa, Vigo. Vigo, com tantos navios atracados aos cais, a animação chique da Calle del Príncipe, gentes doutra fala e outros modos, o seu ar estrangeiro, logo me pareceu sumptuosa, maior e mais atraente que o Porto do meu nascimento. Numa mesa de esplanada, uma divindade de cabelos ruivos, vestida de seda branca, a fumar languidamente, fez soar pela primeira vez no meu íntimo o alarme da paixão súbita. Aquilo sim, era vida. Ali começava o vasto mundo de mil paisagens e mil vivências por onde depois viajei, quando as locomotivas ainda iam a vapor, o avião era um luxo, o Nepal um reino de fábula escondido no Himalaia. Mas com o passar dos anos o mundo foi encolhendo e um dia, como quando no teatro o pano cai no final dum acto, a minha vida tornou-se quase estática. A última grande viagem (grande?) que empreendi data de 1978. De Amsterdam pela Alemanha e a Áustria, daí a Veneza, Ravena e Florença. Depois a costa do Mediterrâneo, o sul da França, a Catalunha. Mais um pouco de mar até Valência e, cortando pela Extremadura, a travessia da Serra de Gredos, uma última etapa em Salamanca e finalmente a aldeia de meus pais. O regresso da aldeia a Amsterdam não conta, porque esse trajecto há muito  deixou de ser viagem. Mau grado os quatro mil quilómetros de ida e volta, já tantas dezenas de vezes o percorri que se me tornou apenas o longo e monótono caminho entre duas casas. Imperceptivelmente, pois, o que na minha vida foi imprescindível tornou-se desnecessário, as viagens que hoje faço são todas interiores e deixei de rir com a história verdadeira da senhora K.

Depois de muita insistência por parte da família e das amigas, Anna K., solteirona nos setenta, deixou-se convencer de que um cruzeiro seria a merecida coroação de uma vida de labor e fadigas. E foi de viagem. Mas de Rotterdam a Lisboa, Gibraltar, Tunes, Alexandria e os mais portos exóticos onde o navio tocou, nunca ela quis desembarcar, com o pretexto de que nenhuma excursão valeria o esforço nem a pena. Os companheiros deixaram de insistir ao ouvir-lhe a promessa de que em Bali desceria a terra. Mas em Bali a senhora K. puxou como de costume uma cadeira para a sombra do convés, sentou-se nela voltada para a ilha e continuou o seu crochet. Os outros acharam aquilo um comportamento demente. Ninguém em seu juízo paga uma fortuna para percorrer metade do mundo e, em vez de gozar as maravilhas a que tem direito, passa o tempo reclusa a ver a paisagem de longe. Ela concordou com um sorriso enigmático e respondeu que de facto tinha esperado melhor: gastava-se tempo, gastava-se dinheiro, e nem sequer era tão bonito como na televisão."

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In Mazagran, Quetzal 2012