De Carlos M. Fernandes aqui:
"A criação de conhecimento exige trabalho e acarreta um risco: quem o tenta fazer, dá por si, com regularidade, nas regiões fronteira das suas capacidades intelectuais e vê-se forçado a lidar com o desencanto provocado pela percepção dos próprios limites. Quiçá seja esta a origem do progressivo descrédito do conhecimento e da tentação de confundi-lo com acesso à informação. Quando se promove o facilitismo, nivela na mediocridade e esconde o sentimento de frustração das gerações em formação, a máxima latina per aspera ad astra, que é como quem diz, sem sofrimento não há glória, é inadmissível. Para a sobrevivência das doutrinas hostis ao rigor, é fundamental que a palavra conhecimento seja expurgada do seu significado tradicional. Caso contrário, descobrir-se-ia que os mais bem preparados de sempre são apenas indivíduos permanentemente ligados a uma central de dados.
O método mais eficaz de converter informação em conhecimento é a leitura. Ler, contudo, não deve ser reduzido à sua dimensão utilitária. Lemos, também, pelo prazer estético e para ampliar os nossos horizontes espirituais. No território da ficção, fazemo-lo para iluminar uma dúvida que, no mundo físico, é impossível de esclarecer em toda a sua enorme extensão: “e se”? Isto é, a ficção pode ser entendida como a exploração possível do espaço de possibilidades – ou, numa linguagem mais figurativa, como um laboratório onde se investigam os mundos paralelos que a ciência mais atrevida gosta de conjecturar. Tratando-se de alta literatura, o enredo não só resiste ao teste do tempo, como se aproveita do seu passo inexorável para oferecer, leitura após leitura, universos supletivos e, muitas vezes, intransmissíveis. A boa ficção, mesmo quando criada num contexto histórico específico, liberta-se do tempo e ajuda-nos a compreender o presente, dando-nos, em simultâneo, uma perspectiva da condição humana que supera qualquer tratado político.
Posto isto, resta alertar para o despropósito de encerrar a grande literatura num juízo ideológico ou de recusá-la por violar as normas politicamente correctas. Lê-se para reflectir e questionar, não para refutar ou demonstrar. Como escreveu Claudio Magris, “a verdadeira literatura não é a que lisonjeia quem lê".