Só pelas imagens que evocam, histórias há que nos acompanham a vida inteira. Ouvidas a primeira vez na escola, contadas por uma professora com o dom da palavra, a nossa imaginação vai-lhes depois acrescentando detalhes coloridos, e quando nos damos conta assumem proporções de romance. Personagens saídos do caótico depósito da nossa fantasia par-ticipam nela com intrigas e aventuras. Onde tudo era deserto criamos um oásis. Deixamos a modesta realidade do lar para habitarmos os palácios das Mil e Uma Noites. Transformamos o pouco em milagre. O comezinho em mistério.
Na sua simplicidade a história original é breve. Em1415, depois da conquista de Ceuta, os portugueses ouviram pela primeira vez falar da grande caravana que todos os anos se formava em Marrocos, e depois, vencendo as montanhas e o deserto ia a comerciar até ao coração da África. Por si só isso não era novidade, sim o facto de a caravana praticar o chamado «comércio silencioso».
Chegados ao rio Senegal os chefes mandavam tocar bombos e charamelas para anunciar a sua presença, enquanto os escravos descarregavam os camelos e colocavam as mercadorias na margem. A caravana retirava-se depois para o acampamento, passava aí a noite, e na manhã seguinte voltava ao rio.
Junto de cada lote dos seus próprios produtos os mercadores encontravam uma certa quantidade de pepitas de ouro, deixadas pelos negros que viviam nos montes da margem oposta. Se porventura a oferta lhes parecia insuficiente, diminuíam o seu lote e regressavam ao acampamento para passar a noite. Na manhã seguinte voltavam à margem. Em geral, a quantidade de pepitas também diminuía, e assim regateavam invisíveis e silenciosos durante dias sucessivos. Quando uma das partes se apoderava da mercadoria ou do ouro que lhe convinha, o negócio considerava-se fechado. Os chefes mandavam rufar novamente os tambores, em sinal de despedida, levantavam o acampamento e a caravana regressava a Marrocos. Sem nunca se encontrar ou se ver, ambas as partes mantinham um uso tão antigo que o próprio Heródoto já mil anos antes o referira.
Não sei por que razão ou propósito a professora nos contou a história, mas lembro o sol da tarde, o pesadume que causava o ar abafado da sala, obrigando alguns de nós a repousar a cabeça nos braços e a quase adormecer sobre os tampos das carteiras. À palavra caravana já eu, envolto num albornoz branco, seguia num camelo carregado de sacos de conchas, sofrendo com o calor e o chouto desajeitado do animal. A luz intensa e a poeira levantada pelas centenas de camelos à minha volta obrigavam-me a cerrar os olhos, mas as palavras da professora – que eu ouvia vagamente como uma espécie de música de fundo – depressa me fizeram sair do deserto e entrar nas montanhas do Atlas a tremer de frio. Veio depois a longa travessia da savana, a floresta temerosa, onde em redor se sentia a presença ameaçadora das feras. Finalmente estávamos diante do Senegal, rio largo de águas amareladas. Nesse momento juro que ouvi os tambores e as trombetas, recordo-me de ter desmontado com dificuldade, vejo ainda a expressão dos rostos exaustos dos escravos que tinham feito o caminho a pé.
Acordei na minha cama a tiritar de cansaço. Não tenho lembrança de nesse dia ter saído da escola, nem até hoje seis e sonhei em duas ocasiões o mesmo sonho, ou se, como sempre pedia quando rezava, nesse momento foi satisfeito o meu ardente desejo de, pelo menos uma vez, viajar no espaço e no tempo.
in Mazagran, Quetzal 2012