segunda-feira, maio 11

O ancião e o binóculo


Os primeiros dias foram de algum desconforto, aborrecimento pela mudança de hábitos e ver-se sozinho, preso em casa, obrigado a tarefas de que pouca ideia tinha e que desde o divórcio a Lourdes se encarregava com discreta eficiência e assomos de carinho maternal.
O caso é que a boa intenção de planear o tempo e obrigar-se a disciplina não resistiu ao desleixo, escorregou no comodismo, fingindo que se irritava por sair da cama a meio da tarde, e isso quando o estômago pedia. Felizmente, ao findar a segunda semana teve um acesso de bom senso ao dar-se conta que se arriscava a viver numa pocilga, e embora fosse  escassa a sua capacidade na lida doméstica conseguiu dar um certo arranjo ao apartamento, diminuir a bandalheira, se a Lourdes o surpreendesse não acharia motivo para o repreender mais do que de costume.
Foi assim que mexendo ao acaso em gavetas que raro ou nunca abria encontrou o binóculo que a filha mais velha, a Teresa, lhe tinha oferecido, mas tantos anos atrás que não recordava por que motivo, provavelmente um aniversário. Não tinha ideia de alguma vez lhe ter pegado, reparou que era um Zeiss, aumentava oito vezes, e foi à janela a apontá-lo à rua, surpreendido com a nitidez dos detalhes, a alegria infantil de ver tão perto corpos e rostos.
O telefonema do Sérgio interrompeu o divertimento e demorou mais do que o costume, quando o tagarela se despediu estava na cozinha a hesitar se uma pizza calaria a fome ou lhe sobrava disposição para uma omelete, decidindo por uma sande de presunto e queijo que foi comendo enquanto seguia distraído a televisão, o pensamento a saltar desordenado de ninharias para obrigações, o remorso de que há quase um ano não via a filha.
Voltou à janela, os olhos a correr o prédio fronteiro, a sua curiosidade de súbito espicaçada pela cena que o fez deter-se, e antes de agarrar o binóculo desligar a televisão, apagar as luzes, cuidando de se pôr de maneira a ficar escondido do casal de idosos sentados frente a frente numa sala atravancada de móveis orientais.
A mulher gesticulava e o homem, que reagia a espaços erguendo o punho ou apontando excitado, de súbito levantou-se com um modo agressivo. Talvez porque a imagem no binóculo tremia e o suspense aumentava a expectativa, sentiu que algo de estranho, talvez perigoso ia acontecer. Mas o homem saiu da sala, a mulher ergueu-se com dificuldade, as luzes apagaram-se e ele deu-se conta do vazio em que sempre ficamos ao deixar que a imaginação esporeie a realidade.