O fascínio dos submundos
Entrevista de Fernando Venâncio
Revista LER, 2014
.
José Rentes de Carvalho (Vila Nova de Gaia, 1930) é na
Holanda, desde há décadas, «o rosto de Portugal». Assim o disse o publicista
Hans van de Wetering ao entrevistar o escritor, na rádio holandesa. É sobretudo
um rosto literário, com vários best
sellers e uma elevada reputação na crítica.
Em
Portugal, Rentes de Carvalho era, até há poucos anos, um quase desconhecido,
mesmo se os seus originais foram, todos, sempre redigidos em português. Os dez
volumes entretanto publicados na editora Quetzal vieram mudar o destino.
E de que
maneira. No último número de A Página da
Educação, a principal revista de professores portugueses, Júlio Conrado
refere as suas buscas em livrarias de Com
os Holandeses e o lamento de uma empregada: «Já não temos. Mas do Rentes
ainda há aí O Rebate». Comenta o
crítico: «Do Rentes? Assim, de cor e a seco? É a glória, homem»... E é.
*
Um antecessor seu, o
jornalista Ramalho Ortigão, andou pela Holanda durante a Exposição Universal de
1883. Chegou muito bem informado, e aproveitou para escrever A Holanda, o retrato de uma sociedade
conservadora e ordeira, que ele idealizava para Portugal. A julgar pelo seu
livro A ira de Deus sobre a Holanda,
de 2008 (não editado em português), foi essa também a sua impressão, quando
chegou aqui, vai para sessenta anos.
Sim, a Holanda continua a ser, em vários aspectos, essa
sociedade ordeira. Só que, desde há uns vinte anos, essa 'ordem' deixa a
desejar, ao ser inspirada, muitas vezes, por uma correcção política. No seu
amor ao próximo, o holandês está disposto a aceitar nele as piores coisas. Há nessa
falta de frontalidade uma insensatez, e até uma espécie de cobardia. Esse meu
livro, que põe essa hipocrisia a nu, foi boicotado pelo próprio editor, para
não ferir os amigos da área trabalhista. Foi para mim traumatizante, fiquei
anos sem escrever coisa nenhuma. E, se não fosse este milagre de ser editado
pela Quetzal, eu teria deixado de escrever.
Saiu agora Mentiras e Diamantes, o primeiro livro
seu, em quarenta anos, que aparece primeiro em português. A editora portuguesa
salvou um escritor?
Se o escritor tem alguma valia, assim foi.
Os romances de Eça,
Saramago e Lobo Antunes estão traduzidos na quase totalidade para neerlandês, de
Pessoa existem vários e bons volumes, de bastantes outros autores portugueses há
obra publicada. Depois, os tradutores ‒ como August Willemsen, Harrie Lemmens e
Arie Pos ‒ são considerados de topo. Isso influi na nossa imagem na Holanda?
Pouco. Só para uma elite são autores de referência. É
certo que uma antologia de Pessoa, excelente e caríssima, vendeu, num só ano,
80.000 exemplares. Mas o holandês médio conhece o Algarve e pouco mais. Em
termos de imagem, o meu Portugal, um Guia
para Amigos terá tido algum efeito mais. Segundo o AICEP, ele levou a
Portugal, nos primeiros dez anos, cerca de 350.000 turistas holandeses. Mas
também isto ficou sem sequência. Não conseguimos consolidar o processo, ao
contrário da literatura hispano-americana. Às vezes, um acidente inesperado é
determinante, mas ainda não tivemos essa sorte.
Foi, no entanto, um
acidente o que lançou, em 1972, a sua carreira holandesa.
É verdade. Uma conversa de café com um editor terminou no
envio de um cheque e o pedido de um livro. Assim nasceu Com os Holandeses. Mas houve mais. As primeiras encomendas foram,
por um qualquer equívoco, feitas por sex-shops.
Vendeu já muitas dezenas de milhares.
E continua a
vender, passados quarenta anos. Os holandeses ainda se revêem nele. As reacções
aos seus livros foram, de resto, sempre entusiásticas. Como está a ser, agora,
em Portugal?
Chegam-me mostras de muito apreço, e até carinhosas, e não
só daqueles juízos primários de que «está bem escrito». O arquitecto Souto
Moura, um dia, recebendo um grande prémio, diz que adora o Porto e Gaia, mas
que os vê melhor através daquilo que eu escrevo. Cumprimentos assim, tenho-os também
de leitores anónimos. Fico ciente de nem tudo ter sido em vão.
E, todavia, numa
crónica de Mazagran, diz que aprendeu
muito cedo a encarar as expressões de entusiasmo «com certa desconfiança». Ora
eu atrevia-me a considerar as suas descrições de cenas violentas ‒ e cinjo-me
agora a Mentiras e Diamantes ‒ autenticamente
espectaculares. Penso nos porcos a devorarem o cadáver do 'Biafra', ou na
tortura infligida ao advogado Munim. E há uma terceira cena, no final, que não
aparece sequer descrita, mas que adivinhamos, apavorados. Só que, noutra
passagem de Mazagran, vejo que você se
dá mal com a lisonja...
(Risos) Refiro-me
à lisonja banal, corriqueira, de quem nem para ela é habilitado. Ou à lisonja maldosa,
que também existe.
Como vê, na
perspectiva de hoje, as suas edições portuguesas dos anos 90, na editora O
Escritor, do Leonardo Freitas?
Com muito carinho. O Leonardo fez um óptimo trabalho, num
momento em que era muito difícil. Lamento que, desde que comecei a ter algum
sucesso, não tenha reagido às minhas tentativas de contacto. Suponho-o
traumatizado por ir na cantiga de um sujeito que lhe propôs distribuir o que
havia dos meus livros, que aparecem agora em antiquários.
Vive fora de
Portugal desde os anos 50. Sente-se um estrangeirado?
De maneira nenhuma. Estou aqui por favor, do Destino e das
circunstâncias da vida. Sou tão intensamente português que até dói.
Eu não esperava
outra resposta. Sei que, perguntando isso ao Sena, ou ao Miguéis, ou ao
Pinheiro Torres, teria ouvido exactamente o mesmo. Até um colega mais novo, o
Ricardo Adolfo, agora em Tóquio...
Gostei muito da Mizé
dele, fiz rasgados elogios no meu blogue.
... Exacto. Disse ele,
numa recente entrevista no Público ao
José Riço Direitinho: «Somos sempre uns convidados. Podemos viver lá [fora] o
resto da vida, mas nunca deixaremos de ser uns convidados». Concorda?
Não o vejo assim. Em matéria de cultura, de literatura, não
estou preso aqui a nada nem a ninguém. Estou-me nas tintas para as opiniões,
para a visão que tenham de mim. Não me sinto convidado, porque não tenho
interesse em ser convidado. Agora, na minha terra, é outra coisa.
Terem-no
desconhecido em Portugal há-de ter-lhe doído.
Sim, foram quarenta anos de frustração, e tristeza. Mas
mesmo lá não bateria a porta nenhuma para que me convidassem. É contra tudo o
que é sangue e nervos dentro de mim. Tenho um orgulho do caneco.
Você é
tremendamente duro com os políticos, portugueses ou não. Em vários textos deixa
perceber que está a par de razoáveis trafulhices nesses meios.
Não lhes tenho respeito nenhum. Sei que há políticos
portugueses honestos, muito inteligentes e muito capazes. Mas um confronto
genérico com uma democracia bastante decente, como é a holandesa, deixa-me sem
termos de comparação. Temos aquilo a que o Naipaul chama «sociedade pícara»,
aquela em que cada um mente o que pode, rouba o que pode, sabendo que os
outros, quando necessário, não lhe faltarão com amparo. Veja o caso de chefe de
gabinete num governo de Cavaco, que é feito embaixador na Haia. Eu
perguntei-lhe: «Como é que agora os socialistas lhe dão um dos lugares mais
apetecidos?» Diz-me ele: «Em que mundo é que você vive?» Eu teria material para
um ou dois romances.
Não o motiva
suficientemente, é isso?
É. Deveria ter encarreirado pelo jornalismo de
investigação.
Mas há livros seus,
como La Coca, que estão lá muito
perto. Vem até sugerindo, aqui e ali, que houve indivíduos do submundo a aliciarem-no
para negócios escusos.
E rendosos, sim, e sobretudo seguros. Em vez de me manter
na pachorra da universidade, podia ter entrado no negócio da cocaína, ou da
venda de armas, mesmo no de diamantes. Sem correr o mínimo risco. Porque há os
que são apanhados, os descartáveis, e há os intocáveis, os que nunca serão
apanhados. Mesmo que o queiram. As cumplicidades e os interesses não o
permitiriam. Eu tive a escolha, junto com ofertas espectaculares em Portugal,
depois do 25 de Abril. Não aceitei. Mas houve mais.
Conte lá.
Um diplomata brasileiro então acreditado da Holanda
levou-me, certo dia, a uma cave, num edifício de apartamentos, recheada de todo
o tipo de armamento, e ofereceu-me sociedade. Outro caso: um amigo meu, judeu
aqui de Amsterdão, já falecido, tinha sido tesoureiro dum determinado grupo de
barracas em Auschwitz, em que se fazia transacção de valores. Salvou-se e
estabeleceu um negócio de sacos de juta, que então se usavam para café,
cereais, produtos a granel. Era um grande armazém, perto da estação central,
que descia em rampa até à água e onde podiam entrar barcos. Na verdade não passava
de fachada. Era a station na Holanda
dos serviços secretos de um país mediterrânico amigo. Eu podia ter entrado
nisso, se quisesse.
Vejamos. Essa gente
não é parva. O que é que os leva a confiar em si?
Simples: eu não sou traidor. Eles verificaram,
controlaram, testaram, ofereceram-me o que para outros seria irresistível, e eu
não cedi. Nenhum encontro é por acaso.
E você estava
destinado ao escalão dos intocáveis?
Não, eu seria a vitrina, a face aceitável. Eu teria
continuado na mesma... e talvez tenha continuado (risos). A sério: é muito tentador. O risco é que, na máfia, você
fica atado de pés e mãos.
Podemos então
confiar em que a sua escrita não é uma fachada...
Não, não é «a» fachada. Mas alguma coisa há-de ter-se
infiltrado nela.
No início de Mentiras e Diamantes, faz vários
agradecimentos. Em que lhe foram úteis essas pessoas?
Em contar-me certas coisas que desconhecia. Por exemplo
que, na Bélgica, no sector dos diamantes, o Estado tem um comportamento dúplice.
Isto para defesa dos joalheiros chassidim
de Antuérpia, assediados tanto por mafiosos de Leste, também eles judeus, mas
infinitamente menos profissionais, como por falsos diamanteiros indianos. Se as
autoridades não permitirem aos indivíduos legais certa margem de traficância em
matéria de impostos, os outros vão alcançar vantagens desproporcionadas. E aí
quem perde é o Estado belga. Resultado: os negociantes legais só pagam o
imposto que querem. O mesmo vale, aliás, para os joalheiros de Amsterdão.
Tem isso a ver com
o sentimento de culpa para com os judeus, reinante nesta cidade, donde tantos
foram parar aos campos de extermínio?
Não. Os judeus têm, desde tempos imemoriais, o negócio e
não o dão a ninguém. Com uma chantagem sobre o Estado, que já dura há séculos.
Se as autoridades em Antuérpia não aceitarem as regras do jogo, os chassidim ameaçam mudar-se para
Amsterdão. Os judeus daqui agem em contrapartida.
Nesse seu último livro,
há uma saborosíssima peça jornalística, supostamente publicada no Guardian, sobre figuras do submundo
belga, como Viktor Bout, «o maior traficante de armas do mundo».
Sim, e dono duma companhia de aviação que transportava
tropas americanas para o Iraque. Não é um sujeito 'mau', faz simplesmente o que
lhe rende dinheiro. Está agora preso, por uma ninharia qualquer.
No fim do romance,
todos os rastos do submundo são apagados, ninguém é apanhado, nada parece ter
acontecido. Isto obedece às regras do género?
Está tudo sintetizado na figura do dr. Castro. O conde vai
do Algarve ao Gerês pedir-lhe que livre o feitor da prisão e o Castro só
precisa do nome do homem, e tudo está já resolvido. O mundo do poder é
incrível. Ou se tem ou não se tem. Há quem tente agarrar-se a maçonarias ou ao
Opus Dei, para subir, ignorando que, no autêntico mundo do poder, ninguém
'quer' nada, é-se escolhido.
Esse mundo
fascina-o.
Não para lhe pertencer, mas para saber. Tenho um grande
desejo de ver claro. De vez em quando vejo uma frinchinha, e ela dá-me uma
ideia das grandes portas que estão por trás. Mas, essas, nem eu posso ver nem
me são abertas.
Conhece gente
assim, esses 'padrinhos' tipo dr. Castro?
Eles entram em contacto comigo. Um sujeito que foi cônsul
de Portugal, aqui, nos anos 50, filho ilegítimo dum ministro dos Negócios
Estrangeiros, falou por qualquer razão de mim em Lisboa. Fui convidado, como se
fosse um acaso, a uma casa magnífica no Restelo, por onde passavam várias
figuras públicas, como o Mário Soares, que era visita da casa, ou antes, era
obrigado a ser visita da casa, coisa que metia o poder político americano. Convidaram-me,
certo dia de Junho de 1974, para um jantar numa quinta que tinham em Arruda dos
Vinhos. Estão várias pessoas à mesa, entre elas dois americanos, falando um
brasileiro impecável. O dono da casa diz-me: «Sabe quem é esse senhor ao seu
lado?» De facto não sei, e ele informa-me: «É o general Vernon Walters, chefe
da CIA para a Península Ibérica». O ambiente é de descontracção, e há um
momento em que a senhora da casa pergunta: «Ó senhor general, deixam estar isto
aqui como se vê, e não fazem como ao Chile?» Resposta do senhor: «Sabe, um
Chile custa-nos já tanto dinheiro que não podemos arranjar dois» (risos).
As suas personagens
vêm ter consigo na vida real...
De certa maneira. As minhas personagens, as pessoas reais
e eu andamos aqui nuns círculos concêntricos, olhamo-nos uns aos outros. Mas
nunca escrevi o livro que teria de escrever.
Estava a pensar
nisso. Como seria então o livro em que tudo isso convergisse?
Tenho um título, falta-me o livro. Seria A Procissão dos Mortos. Ainda não tive
tempo para o escrever, se calhar nem vou ter.
Esperemos que
tenha. Mas dê-nos uma ideia dele.
Seria construído de retratos. Sem verdadeiro enredo, só
retratos, situações.
Você foi sempre
muito bom nisso. Neste último romance, há dois ou três retratos
fortíssimos.
Bom, o primeiro esboço para ele datava já de 1998. Mas em
Julho passado, de repente, qualquer coisa disparou, e o livro estava pronto na
minha mente. Mas sou lento a escrever, muito exigente comigo mesmo. Não sou dos
que se impõem um livro por ano... Forço-me a uma escrita cuidada, com alguma
coisa de música.
Consegue música,
certo. Mas também alguma malícia, a de pequenos paradoxos, como quando fala dos
«golpes baixos que só os que se amam sabem dar». Ou este, em que alguém se perde
em minúcias, «como sempre fazem os indefesos, que se culpam e bajulam na
esperança de perdão». Há aqui um baralhamento de expectativas. O leitor concorda,
mas a contra-gosto.
É porque não se conhece, nunca falou consigo próprio. Não
confessou a si próprio que é capaz de mostrar-se indefeso para escapar ao
castigo. Eu não escrevo para tranquilizar ninguém, menos ainda para que gostem
de mim. Mas tenho o maior carinho por quem me sabe ler.
Diz também: «A
verdade é só mais uma das nossas ilusões». Não será isto um lema para o livro
inteiro?
O livro todo é de mentiras. E talvez acabem por ser, elas,
a única verdade. Descodificando a mentira, encontramos aquela forte verdade que
ela quer esconder. E eu espero que seja o leitor a fazer essa operação. Não
facilito, não incentivo aquele tipo de leitura trivial. Permito que o leitor,
aqui e ali, perca o pé. Por simples respeito para com ele. Por mim, ocupo-me,
como um malabarista, a manter todas no ar, e sem perder a cabeça, quinze personagens,
nas suas mudanças de tempo.
O seu protagonista,
Jorge, diz: «O que em mim parece distanciamento pode muito bem ser uma forma de
modéstia». Está a falar de si, de uma reserva que seria muito sua?
Terá a ver com a situação do filho único, criado num
ambiente muito restrito.
Não é portanto uma
virtude.
De modo nenhum. Isso torna-nos pouco sociáveis. Na Holanda
não tenho amigos. Tenho gente conhecida e a minha família.
Houve, no entanto,
um momento, por volta dos anos 80, em que você era, na Holanda, uma estrela
mediática. Era mimado pela imprensa inteira, não havia talk show a que não fosse. Estavam enganados a seu respeito?
Nada disso me tornava mais sociável. Aceitei tudo sempre como
uma obrigação que você tem. Não como um prazer.
Para lhe ser
totalmente sincero... Quando é entrevistado, uma coisa é notória: qualquer que
seja a pergunta, você responde...
... «não». Eu sei. É decerto frustrante para um
entrevistador. Mas é uma maneira de manter-se ao mesmo nível que ele. De não ir
comer-lhe à mão. Até hoje, em Portugal, tive duas entrevistas de grande
qualidade: uma com o Carlos Vaz Marques, na TSF, e outra com a Paula Moura
Pinheiro, na RTP2. Aí não aplico quaisquer estratégias. Mas, concedo, há em mim
um elemento de defesa, de reserva. É o meu travão de mão. Segundo um conhecido
historiador americano, e meu amigo, Kenneth Campbell, os portugueses diziam aos
povos que encontravam Come closer but
don't grow up, enquanto os franceses e anglo-saxões diziam Grow up but don't come closer. Com as
pessoas, sou mais deste segundo grupo. Torno-me perigoso para mim próprio
quando me entrego. Abusam de mim. Foi o que me aconteceu com Gerrit Komrij, o
holandês que eu, com uma candura imbecil, introduzi em Portugal.
Isso foi por 1983.
Ele era um dos escritores mais célebres do seu idioma. Viveu em Portugal até
falecer, no ano passado.
Eu sou carinhoso até ao excesso e vi-me tremendamente
defraudado. Nunca poderei narrar o mal que me foi feito, e a pessoas que me
eram próximas. Mexi-me o que pude para instalar o senhor em Portugal, num
palácio, como ele pretendia. Apresentei-o ao Alçada Baptista, que nos levou a
Sintra, onde havia a hipótese da quinta da Regaleira.
Komrij conta isso,
de modo exuberante, num livro belíssimo, Um
Almoço de Negócios em Sintra...
... Precisamente, que você traduziu para português. Bom, a
coisa metia muitos milhões e não foi avante. Encontrei depois, através de um
amigo de Bragança, um casarão em Alvites, Trás-os-Montes, de que o senhor
alugou uma parte. Mas aos poucos açambarcou o palacete inteiro, e tudo quanto
lhe pertencia à volta. Não entro sequer em pormenores de outro teor, de tipo
mais escabroso. A situação tornou-se, por fim, insustentável e ele acabou por
ter de fugir de lá.
Entretanto, Komrij era
um extraordinário escritor, tradutor, polemista. Todo o meio intelectual
holandês o acarinhava.
Isso é verdade, ele tinha talento, a escrita holandesa
dele é um assombro. Mas poucas pessoas conheceram o lado maldoso, mesmo
desumano, que havia também nele. Ele próprio conhecia-o, isso lhe garanto.
Em Tempo Contado, você refere, sem
explicitá-las, «as razões que levaram a intimidade a transformar-se em
cortesia»... É só uma das mensagens cifradas que você e ele trocaram em
público. Essa aventura trasmontana de Komrij tornou-se depois um romance, Atrás dos Montes, traduzido por Patrícia
Couto.
Pois é. Certo dia, estamos num café, aqui em Amsterdão, e
diz-me ele: «Escrevi esse romance para me adiantar. Assim fica a minha história
já contada». Levantei-me, paguei as cervejas e nem me despedi.
Quando este número
da LER sair, já a Holanda terá um rei, Guilherme IV, depois de um século e meio
de rainhas. Sei que se dá bem com a rainha Beatriz, que abdica a 30 de Abril.
É verdade. Em 1973, já o meu Com os Holandeses tinha saído, o embaixador da altura disse-me ter
«um recado», palavras dele, da parte do príncipe Bernardo, o pai da rainha Beatriz.
Tinha-se divertido muito com o livro, ele que também era estrangeiro. Outros episódios
houve, mas ocorre-me sobretudo um jantar no museu Van Gogh, já nos anos 90, que
o presidente Mário Soares, em visita de Estado, ofereceu à rainha. Eu não
estive, por circunstâncias particulares. Mas o embaixador Rosa Lã contou-me
que, à mesa, a rainha, sentada ao lado do presidente, talvez à falta de outro
assunto, tinha tecido elogios a meu respeito, deixando abismado o presidente
Soares. No Natal desse ano, recebo uma fotografia dele com dedicatória ao «meu
grande amigo» (risos). No ano
seguinte, soube pelo embaixador que eu tinha sido condecorado.
Que condecoração?
Comendador, julgo que da Ordem de Cristo, já não sei... [Ordem
do Infante Dom Henrique, FV]. Noutra
visita de Estado, já era Jorge Sampaio presidente, sou convidado para uma
recepção e, na altura dos cumprimentos, a rainha elogia o presidente por este
seu famoso concidadão, deixando-o visivelmente atrapalhado. Faço vénia, sorrio,
dou a vez a quem segue.
Bom, com isto, já
assustou dois presidentes. (risos)
Tempos depois, recebemos um convite para um almoço na residência
particular da rainha, na Haia. Éramos oito à mesa, a minha mulher ao lado do
príncipe Claus, marido da Beatriz, e eu ao lado da rainha, que ia contando,
divertida, as belas férias que tinha tido no Algarve, em casa do sr. Heineken. Agora
o inesperado da história: passeava a rainha em Faro e quebrou uma perna. Foi
conduzida ao hospital, e teve de ir ao primeiro andar, sendo levada, contou
ela, ao colo por um polícia. Grande espanto, tanto meu como do embaixador
Cascais. O que tinha levado Sua Majestade a esconder quem era? E ela explicou:
«Eu estava de sandálias, com uma saia do mais baratucho que há, e ia dizer que
era a rainha da Holanda? Ainda me metiam num manicómio».
*