sábado, julho 8

Os anos e o coração

 

Chegada a muita idade, o exercício de olhar para o passado requer mais do que a memória, entram nele doses abonadas de paciência, compreensão, humildade. Caso contrário pronto se cai no pessimsmo, ou pior, no desdém pelas mudanças, a negação do evidente, o aborrecimento que causa a incapacidade de compreender e acompanhar.

Infelizmente não há escola onde se aprenda a ser velho. Mesmo os que por razões de genética, boa sorte, ou bizarria do Destino, alcançam esse estádio razoavelmente capazes no funcionamento da cabeça, tronco e membros, descobrem em certas ocasiões que o aparente benefício é, de facto, um presente envenenado.

Veja-se o caso de Armando Pestana, que em Setembro vai completar oitenta e dois, e há vidas mantém uma relação extraconjugal com a Luizinha Valadares, beldade a quem faltam ainda dez meses para que chegue aos quarenta.

Relação platónica, é certo, limitada a mensagens, telefonemas, breves encontros, e ainda mais breves carícias das mãos, porque o Diogo Valadares pode passar por manso, mas a Luizinha conhece-lhe os maus fígados, sabe de sobra que bastaria cheirar-lhe a traição, e se por azar os apanhasse em flagrante, de ambos nem os ossos se aproveitariam.

Quis o Destino que coisa de meio ano atrás o Valadares começasse por se queixar que lhe davam umas pontadas, depois tinha ocasiões que nos degraus ficava sem ar, mas na manhã em que jurou à Luizinha que iria ao médico, na paragem do autocarro caiu redondo, fulminado pela síncope.

Como se espera de um conhecido, o Pestana esteve no velório, deu os pêsames à viúva, acompanhou o funeral, mas nada o preparara para uns dias depois, na sua paz de solteirão abonado, abrir a porta à Luizinha, e ouvi-la dizer até que enfim, realizava-se o que ambos tinham sonhado: vinha para ficar.