Em defuntos e famas o bom conselho é não mexer. No que respeita os primeiros as razões saltam à vista, mas pelo menos para mim, tratando-se de reputações o caso torna-se bicudo. É facto que, como o comum da gente, aceito com pouca vontade de investigar a fama que, pelos séculos adiante, gozam os grandes políticos, grandes generais, os grandes isto e aquilo.
Compreendo que os depositem em panteões, lhes ergam estátuas, gravem o nome em letras de ouro, e que de geração em geração se vá repetindo que foram grandes.
Aqui descambo um pouco, pois se estava a pensar em fama não era a dos caudilhos, mas a da gente da escrita, o tipo a que os estudiosos se referem falando de “grande homem das Letras”, qualificativo seguido, em geral, de pontos de exclamação.
Nesse particular Raul Brandão (1867-1930) é uma das minhas bêtes noires. Se adrego dar com estudo ou artigo que trate dele e da sua obra, desanda-se-me o entendimento.
Leio isto e mais num que acidentalmente me vem à mão:
“O catastrofismo ‘finissecular’ de pendor apocalíptico, ora desesperante ora esperançoso, atinge progressivamente na sua obra uma dimensão patética e interrogativa.” E mais adiante: “... tudo isso se torna nele simultaneamente interior e exterior e pode designar-se, nas suas diversas variantes, como o energismo onírico que radicaliza a vida e, em última instância, lhe propicia o único sentido possível.”
Quer o Diabo que em tempos muito idos, por obrigação de trabalho, eu tenha dedicado algum tempo a estudar Raul Brandão. No passado, como agora, o que muito me irrita é a desfaçatez de, para que se lhe não manche a fama, sistematicamente esconder um lado, para mim essencial, da mentalidade do escritor e da sua atitude de cidadão.
Como se dá o caso de estarmos mais uma vez em crise, e os políticos e banqueiros se desunharem em busca de soluções, pelo menos no que respeita a nossa Lusitânia, Raul Brandão, no vol. III das suas “Memórias” sugere esta, que jamais recordo de ter visto mencionada em artigo ou estudo que lhe dissesse respeito:
“A nossa ruína não vem dos políticos nem do regime... o mal é da raça... Se quisermos modificar o país, temos de fazer exactamente o mesmo que se faz com os cavalos, temos de mandar vir homens do Norte, ingleses, escandinavos, suecos, e de manter aqui e além postos de cobrição”.
Ainda nas “Memórias” explica ele que o nosso povo é o fruto de “cruzamentos complicadíssimos de selvagens da época quaternária com iberos, ligures, fenícios...”, nascido de “mães que comiam os filhos”... e dos árabes que em “ondas de sangue negro inundam a península, gente incapaz de civilização, incapaz de coesão nem ideal. Vinham da remota África cevar-se.... A nossa decadência começa com as conquistas, não por causa do oiro, mas por causa dos cruzamentos. O sangue preto alastra no povo... Com uma raça mesclada faz-se um grande país, havendo uma elite que a dirija. O pior é que o sangue negro começa, a certa altura, a alastrar na raça condutora, que não pode conservar-se indemne.”
Mesmo o antagonismo entre Porto e Lisboa é-nos explicado pelo tripeiro Raul Brandão como uma questão de raça: “Ao passo que o semita, no sul, queimava gente aos milhares, nunca foi possível no Porto, devido ao elemento árico, fazer um auto de fé.”
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