“No mundo confortável em que hoje vivemos, o relato objectivo não chega para se ter ideia do que era nos fins do século passado a pobreza e o primitivismo das aldeias de Trás-os-Montes. A imaginação também não basta. Para de certo modo ser capaz de aperceber a realidade de então, o leitor terá de regredir àquele abençoado estádio da meninice em que a alma com tudo se maravilha, e o espírito crítico, por incipiente, não intervém com dúvidas e suspeitas.
Até à minha mocidade pouco ou nada mudara ainda nas circunstâncias de Estevais, a nossa aldeia, e contudo, para reconstruir a vida do tempo, eu que a vivi tenho de me esforçar para impedir que as emoções falseiem as imagens e os momentos recordados, ou que a nostalgia afecte a memória. Vigio-me para que os alindamentos não sejam em demasia, nem entrem à socapa no testemunho.
Alguns serão inevitáveis. Por respeito. Pela compaixão a que obriga a angústia dos que viveram sem sorte nem socorro, oprimidos pelos ricos e as autoridades, abandonados de Deus, sofrendo com as intempéries, que umas vezes os impediam de semear, outras vezes destruíam o que eles meses inteiros tinham sonhado colher. E com pouco pão, poucas batatas, poucas cebolas — esses eram os pilares da sua frágil mantença — aterrorizava-os a passagem dos dias, a certeza de que chegaria o momento inevitável em que os filhos passariam fome, em que de chapéu na mão teriam de ir, humilhados, pedir a algum vizinho ou parente abastado que lhes emprestasse o dinheiro para a sementeira.”
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in Ernestina - Quetzal, 2009