Esteve preso em Espanha, em Marrocos, em França, na Bulgária, na Grécia, noutros países mais. Mas, diz ele, a sua memória não é grande coisa. Baralham-se-lhe as ideias. Gostaria de responder direito, sobretudo às perguntas dos polícias, dos juízes e dos médicos, mas de repente faz-se-lhe na cabeça aquele vazio e por mais que se esforce não consegue. Tem vinte e três anos. O seu orgulho é nunca ter sido preso em Portugal.
- Em Portugal nunca fiz nada. Nem sequer isto – diz, apontando o negro duma unha. – No estrangeiro roubei, meti-me em quadrilhas, fiz contrabando, andei à esmola, vivi-me de putas e de panascas… Aqui nada. Nunca.
Quando soube que estava no hospital fui visitá-lo. A tentação é grande de descrever a sordidez dum hospital numa vila da província, mas maior é a minha vergonha e o meu respeito por quem é pobre e, além da doença, tem de sofrer a indignidade de ser tratado ali.
Na enfermaria havia três camas e eu, não o tendo reconhecido, ia já sair quando ele se sentou na do meio e me chamou: - Estou aqui!
Abracei-o. Chocou-me a extrema magreza que as camisolas que tinha vestido encobriam. De facto não o teria reconhecido. Da criança alegre e do rapaz desempenado que eu conhecera, nada restava. Os olhos luzidios de saúde, extraordinariamente negros, tinham agora o brilho da febre. O cabelo, que antes usara longo e era a sua vaidade, sempre a lavá-lo e a penteá-lo, eram apenas farripas que pendiam sem vida. A doença cavara-lhe de tal modo o rosto que a pele esticada sobre os ossos parecia translúcida.
- E então, que tens? – perguntei, a temer que o silêncio denunciasse a minha perturbação.
- O médico diz que são nervos nas pernas – respondeu ele com um sorriso. – Veja lá! Eu que me embebedei com tudo, que já engoli de tudo, que me piquei até não ter mais onde me picar, que cheirei tanta cola que tenho os pulmões meio quei[1]mados… É ou não é azar? E dizem que é doença ruim. Resmunguei palavras de circunstância, afirmei que a Medicina conseguia milagres. Ele concordou e quis acender um cigarro, mas o maço estava vazio. Em todo o caso, disse, o seu caso não era tão desesperado como o do rapaz cego, na cama ao lado, que estava ali há seis meses e tinha o corpo a apodrecer. É dum tumor que me apareceu na cabeça – explicou o doente, que deitado de costas, imóvel, os olhos abertos, dava a ilusão de fitar o tecto.
– Mas o que está pior de nós três é esse senhor ao pé da janela. Os médicos bem lhe podiam dar qualquer coisa, para que não sofresse tanto.
O ancião, que até aí gemera sem parar, afastou a roupa da cama, mostrando um abdómen inchado, coberto de feridas tão terríveis que instintivamente cerrei os olhos para não desmaiar.
Sem saber que fazer e ansioso pelo ar da rua, ofereci-me para ir comprar cigarros.
Foi quando voltava e ia subir as escadas que a enfermeira me parou: - Conhece o mocinho da cama do meio? Não se chegue muito, porque ele tem Sida.
Agradeci distraído e a palavra não registou, perdido como ia em não sei que pensamentos tristes. Mas de súbi[1]to, ao entrar na enfermaria e ver aquele rosto descarnado que tentava sorrir, foi como se a minha cabeça explodisse.