segunda-feira, outubro 11

"Era o vinho, meu Deus, era o vinho! " (2)

O lagar, feito de pedras de granito, parecia-me então colossal. Ficava no rés-do-chão com uma só janela de uma casa que servia para arrumações e onde de longe a longe morava algum casal jovem no aguardo de melhor pouso.

As uvas eram atiradas pela janela directamente para o lagar, que ao fim de três dias estava cheio. Começava então a pisa. Nesse tempo trabalho só para homens e feito à noite.

Com as calças arregaçadas caminhavam lentamente em redor, num ritmo monótono. De vez em quando aparecia alguém com uma guitarra, mas em geral, exaustos pelas horas que tinham passado curvados ao sol na vindima, moviam-se em silêncio. Fumavam muito e aparavam na mão a cinza do cigarro. Nós, a garotada, ficávamos sentados no muro do lagar, depenicando as uvas que ainda havia nos cestos, fazendo sombras chinesas à luz dos lampiões e, mal o sumo começava a aparecer no lagar, bebendo grandes golos por uma caneca de lata.

No terceiro ou quarto dia da pisa o mosto começava a “ferver”. Então – “porque com a força que tem o mosto a ferver cura tudo”'-  enquanto os homens o remexiam com pás de madeira, as mães alinhavam no lagar os pequenitos mais fracos, ou os que andavam cobertos de borbulhas e, nus em pêlo, depois de uma lavadela eram passados por cima do muro aos homens que os mergulhavam no lagar. Uma vez, duas vezes, três vezes. Só a cabeça lhes ficava de fora. Uns choravam. Outros, com o susto, abriam a boca que se lhes enchia de engaços, cascas e grainhas.

A minha hora também chegou. Num ano em que à família pareceu que eu andava amarelado e escrofuloso, despiram-me junto do muro com os outros, lavaram-me e passaram-me para as mãos dum tio-avô, que carinhosamente me fez mergulhar até ao pescoço. Eu, que ao vê-los chorar os tinha tratado de “cagões” e “maricas, mal me dei conta de ter ao rés dos olhos aquela imensidão de líquido pegajoso, que borbulhava como coisa viva e me ia engolir, soltei gritos tão lancinantes e esperneei de tal modo que não me deram o terceiro mergulho.

 

Porque o trabalho era muito e os braços poucos, o monte de mosto seco ficava tempos à espera de ser distilado. Finalmente uma manhã - na minha recordação manhãs em que o ar tinha já uma frescura de Outono - o alambique era instalado e atestado, as caldeiras preparadas, a fogueira acesa, o garrafão posto na ponta do cano.

Os homens traziam banquinhos para se sentar e esperavam pacientes, enquanto as gotas de aguardente caíam uma a uma, límpidas como chuva de Inverno. Depois vinha a prova. Para a maioria em jejum. O copo passava de mão em mão, e dele bebiam grandes, pequenos, as mulheres que adregavam passar, os anciãos que tinham fé no poder de cura da aguardente nova.

 

De facto a aguardente conta por muito na cura das minhas constipações da infância. De cada vez que começava a tossir e a ficar ranhoso metiam-me na cama, e na mesinha de cabeceira, num prato fundo de esmalte, era deitada uma generosa quantidade de aguardente. Aquecia-se então o prato à luz duma vela e o líquido era incendiado em seguida com um fósforo. À medida que ardia juntavam-lhe lentamente, mexendo com uma colher, algumas gotas de sumo de limäo e umas cinco ou seis colheres grandes de açúcar. Assim que a chama começava a diminuir tapavam-na com outro prato para que se apagasse. O líquido, amarelado, licoroso e deliciosamente doce, era depois deitado numa xícara e bebido devagar. Daí resultavam fortes suores e um longo sono reparador a que nenhuma constipação resistia.

 

O largo onde nasci, em Vila Nova de Gaia, tinha a vantagem de se situar num montículo com um esplêndido panorama. Ao mesmo tempo dir-se-ia uma ilha rodeada por um mar de telhados dos grandes armazéns onde envelheciam e envelhecem ainda milhöes de garrafas do Vinho do Porto. Em muitos desses telhados achavam-se escritos em letras desmesuradas os nomes das firmas proprietárias. Eu, criança, soletrava-os mesmerizado, supondo mágica na estranheza das suas grafias: Kopke, Cálem, Cokburn, Ramos Pinto, Ferreirinha, Gonzalez Byass, Delaforce, Morgan, Niepoort...

Muitas mulheres pobres da vizinhança ganhavam o päo como engarrafadeiras, trabalho que lhes parecia leve porque passavam o dia sentadas a arrolhar numa maquineta as garrafas que lhes iam pondo diante.

Para que nenhuma caísse na tentaçäo de beber da garrafa antes de a arrolhar, envolvê-la em palha e metê-la na caixa, o controle era estrito e o castigo o mais pesado: olho da rua sem perdäo e nenhuma esperança de encontrar de novo trabalho semelhante. Os capatazes concediam-lhes, contudo, um privilégio importante: garrafa que quebrasse no arrolhamento podia ser bebida. E pelo dia adiante quebravam-se umas quantas. Por isso às cinco horas, quando elas saíam do trabalho, na rua que levava dos armazéns ao nosso largo quase só se viam mulheres bêbadas.

Caminhavam aos bordos na calçada, davam gargalhadas insanas, algumas iam em grupo, de braço dado, disfarçando a tontura da bebedeira com passos de dança.

De vez em quando uma tropeçava, estatelava-se, erguia-se soltando palavrões. Algumas sentavam-se um momento no passeio, sem decoro, pernas abertas, a cabeça pendente, até que uma companheira mais sóbria as vinha puxar. Eu, que a essa hora voltava sozinho da escola, caminhava fascinado e temeroso rente à parede.

 

Hoje os fortificantes compram-se na farmácia e têm o sabor artificial que lhes däo na fábrica. Na minha infância a gemada era o fortificante ideal e universal. Dava-se aos bébés, às crianças, aos convalescentes, aos anciãos, às grávidas e aos tuberculosos, aos que sofriam de humores sombrios. Ainda hoje se dá, e o leitor näo perderá nada em experimentar a receita, modelar na sua simplicidade: bata quatro gemas de ovo com quatro colheres de açúcar, junte dois cálices cheios até à borda de Vinho do Porto, remexa e beba.