Nessa altura trabalhava eu sob as ordens de Bernardo T., Charlie para os amigos, filho do proprietário do jornal, playboy cinquentão e herdeiro único de uma fortuna tão colossal que o seu rendimento salvaria as finanças de alguns países.
Avisado pela experiência anterior, cada vez que o ouvia referir-se ao seu «buraco» de Paris, eu imaginava qualquer coisa dez vezes maior que o verdadeiro buraco que em São Paulo me servia de domicílio. Mas mau grado a minha prudência e as cautelas que sabia ser necessário usar na interpretação das palavras dos muito ricos, no dia em que por razões que não interessa agora detalhar o fui procurar no «buraco», caí como plebeiamente se diz «de cu p’rò chão».
O «buraco» eram os dois últimos andares num prédio quase à esquina da Avenue de Wagram e da Étoile, encimados por um terraço tão sabiamente construído que, invisível da rua, oferecia uma soberba vista da cidade e do Arco do Triunfo.
Mais tarde, quando me coube o encargo de guardar a chave e uma vez por semana fazer o controlo da sua manutenção, é que de verdade pude apreciar as dimensões e luxo do «buraco». Nessa altura, porém, já pouco me fazia embasbacar e filosoficamente aceitava a realidade de que o mundo se dividia entre os que nada tinham, os que tinham alguma coisa e os que tinham muito.
A vida destes últimos, embora sujeita às contingências gerais das doenças, dos humores e dos acasos desastrosos, como que decorria num planeta diferente. E não me refiro ao conforto nem às facilidades que o dinheiro compra, mas a todo um comportamento e sistema de valores que só em aparência tinham alguma coisa de comum com os do mundo em que a minha vida decorria.
Entrar ou sair daquele e outros «buracos» equivalia a transmutações tão radicais que, muitas vezes, me perguntei se ler Alice no País das Maravilhas me seria útil para compreender a discrepância entre a minha existência e as que só pareciam verdadeiras no outro lado do espelho.