Na revista do Expresso
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À primeira vista justifica-se o espanto causado pelos motins dos últimos dias na Holanda, o país que nas bocas do mundo, e para quem o conhece mal, é exemplar de pachorra e monotonia, dando de longe a longe nas vistas se um seu ministro recusa abrir os cordões à bolsa ou graceja com a bandalheira meridional.
Curiosos motins foram esses, com violência e estragos, mas sem mortos, os media prontos a informar ser tudo obra da escumalha, dos agitadores da extrema-direita, dos misteriosos grupos que nas redes sociais incitam à revolta e à destruição e, fingindo de inocentes, aconselham os pais a que não deixem os filhos sair à noite.
Conselhos desses seriam para rir mas não são, a aparente calma do dia-a-dia nos Países Baixos oculta tensões de que os recentes motins dão apenas um modesto sinal, como o têm dado as manifestações dos agricultores, dos empresários da restauração e da hotelaria, das agências de viagens e mais uns quantos. Também não ajuda que quase um ano de pandemia tenha resultado num somatório de restrições, proibições e ameaças, revelando o gosto e a facilidade com que o poder político espalha o medo, ameaça, proíbe, manda às malvas a liberdade, os direitos constitucionais, mostrando uma singular e surpreendente apetência para a ditadura.
É menos de esperar que nestas circunstâncias um empresário, um lojista, um engenheiro no desemprego saiam agora à rua a apedrejar a Polícia, mas os mais desfavorecidos da sociedade neerlandesa têm razões de sobra para fazê-lo, e não lhes venham com as tretas da solidariedade para com os refugiados e os que pedem asilo, porque eles perguntarão por que motivo têm de esperar vinte anos por uma moradia social ( sim, vinte anos), quando pouco depois do dia em que chega o refugiado a recebe mobilada, recheada, tem garantido o subsídio social, o abono de família, os cuidados médicos – isso sem ter pago um euro de imposto e num vasto número de casos com a perspectiva de assim continuar.
Costuma-se dizer que um mal nunca vem só, e se o dito se aplica à vida de cada um há também ocasiões em que o mesmo vale para uma nação, neste caso a Holanda, quando entre 2007 e 2013 uma quadrilha de búlgaros vigarizou o Estado neerlandês, falsificando abonos de família e subsídios da habitação. Os funcionários falam de quatro milhões de euros, mas a todos parece anedota, porque ninguém faz a mínima ideia do verdadeiro montante nem de quantos anos o festim durou.
Houve, porém, da parte do Belasting Dienst - a Autoridade Tributária dos Países Baixos - uma reacção que diz muito sobre a mentalidade dos funcionários do Fisco que, tendo sido incapazes de detectar a fraude e corrigir as consequências, tomaram a espantosa e incrível decisão de, sem qualquer fundamento, considerar suspeitos de fraude um pouco mais de 20.000 cidadãos (sim, vinte mil) com salários baixos ou pouco rendimento, aplicando-lhes pesadas multas a torto e a direito, só porque sim e para que aprendessem, pois se ganhavam pouco ou pareciam ter pouco de certeza fraudavam o Estado.
Muitos perderam o emprego e a casa, muitos fizeram dívidas que não podem pagar, muitos entraram em falência, muitos caíram na pobreza e lá ficarão, ninguém saberá quantas famílias e futuros foram destruídos pela arrogância de um funcionalismo que, em vez de servir e cuidar, se toma por dono e senhor da coisa pública.
Durou isso sete anos e dois governos. No mês passado tiveram os holandeses a oportunidade de assistir a um dos mais deprimentes espectáculos da vida política do país: o interrogatório da Comissão Parlamentar aos ministros responsáveis e ao Primeiro-Ministro, todos de várias maneiras a sacudir a água do capote: que não sabiam, não lhes tinham dado contas, não tinham visto ou talvez sim, mas…
Finalmente o governo caiu. As compensações solenemente prometidas ninguém sabe se, como, ou quando chegarão, de modo que ninguém poderá afirmar com certeza se os que agora saem à rua a descarregar a sua fúria são a ralé, os "deploráveis", ou também os que de muitas maneiras se sentem traídos e ameaçados pelos senhores que governam, tanto mais que desde que a pandemia começou esses têm dado fraca conta do recado, ora hesitando nas decisões para depois se mostrarem autoritários, ora impondo e contrapondo, prometendo que o lockdown quase tudo irá solucionar, para de seguida decidir que o bom caminho está no recolher obrigatório.
Tal como era de esperar, embora em pequena escala, logo no início houve protestos, mas a partir do momento em que às nove da noite do sábado 23 de Janeiro o recolher obrigatório entrou em vigor, foi como que uma vaga de violência por todo o país, levando à intervenção massiva da Polícia, à prisão de centenas e à multa de milhares de pessoas.
O burgomestre de Eindhoven, a cidade do sul do país onde houve grandes danos materiais, saques e incêndios, afirmou com alguma verdade: "Receio que se é assim que uns e outros vamos conviver, estamos a caminho de uma guerra civil", enquanto alguns recordam que se tem de recuar até aos anos oitenta, quando as rebeliões dos "krakers" e as cargas da Polícia foram de extrema violência e causaram enormes danos.
Para lá da oposição às medidas tomadas em consequência da pandemia, nos Países Baixos há desde uns tempos um certo ressentimento nalgumas camadas do povo contra a actuação do governo, ressentimento esse originado às vezes por medidas que contrariam certos usos, por exemplo a proibição drástica do fogo de artifício e de grandes fogueiras na passagem do ano, medidas tanto mais difíceis de compreender e aceitar quanto a sociedade holandesa é há séculos uma de exemplar liberdade e consenso.
Curiosamente, à medida que a popularidade do governo vai diminuindo, aumenta a do Primeiro-Ministro demissionário Mark Rutte, talvez por se ter mostrado firme nos debates, sobretudo nas conferências de imprensa em que dá conta das razões do governo, e o seu tom assertivo contrastar singularmente com o de Hugo de Jonge, o Vice-Primeiro-Ministro e Ministro da Saúde Pública, que embora competente não possui o que se pode chamar o dom da palavra, e que num país em que a modéstia é considerada virtude cardeal, ele optar por um comportamento extravagante de que já aqui dei conta: http://tempocontado.blogspot.com/11/viva-o-nosso-calcado.html.
Essa diferença de comportamento vai certamente ter repercussão no resultado das próximas eleições legislativas e o VVD, o partido do Primeiro-Ministro, beneficiará da popularidade que este goza e por enquanto vai deixando atrás os outros partidos, com excepção do PPV (Partij Voor de Vrijheid) de Geert Wilders, que no parlamento se tem mostrado um eficiente e muito activo oponente do Primeiro-Ministro e da acção do governo, o que nas previsões se reflecte num substancial aumento da popularidade do seu partido.
De qualquer modo não é preciso ser bruxo para prever que o próximo governo será um de coligação e os partidos que nele participarem terão de fazer concessões, provavelmente muitas e dolorosas, porque podem ser importantes os princípios doutrinários e grande a vontade de um ar sem poluição, alimentos biológicos e "energia verde", mas tem de haver pão para a boca.
E assim, mais uma vez o que parece só em parte é verdade. A pandemia não terminará tão cedo, mas nos Países Baixos ela agora não é apenas uma catástrofe, mas também o pano de fundo de um espectáculo, e nesse espectáculo contam mais os fantasmas nos bastidores do que os personagens que se agitam no palco. Infelizmente esses fantasmas são de sobra: os pobres e os espezinhados, os doentes, os deixados por conta, os idosos, os muito refugiados que por razões várias serão abandonados ao seu triste destino, e por fim a classe média, que de pilar da sociedade se vai tornando o capacho esgarçado onde, com soberana indiferença, os senhores do verdadeiro poder esfregam a sujidade que se lhes pega às solas.
Nos Países Baixos, como no resto do mundo, a esperança é a última a morrer e são muitos os que crêem que Deus não se distrai nem dorme, mas crentes ou incréus o mal de todos está em que para Ele o tempo não existe, enquanto nós vivemos em permanência com medo do amanhã.