"A censura é indiscutivelmente repressiva. A censura fascista foi, sem dúvida, uma das razões do empobrecimento da produção e da qualidade da literatura portuguesa. Mas por si só não basta para explicar a passividade quase geral dos escritores perante o regime. Em meio século de ditadura são escassas em Portugal as obras de franca resistência à situação política, ou gritos autênticos de revolta. E a quantos autores interessou a situação miserável do povo? Quantos verdadeiramente o defenderam? Que mos indiquem e eu aposto que ao contá-los com metade dos dedos da mão ainda sobram dedos.
Para eles o povo era folclórico, estúpido, pobre por culpa da sua própria ignorância. Quando se lêem os romances em que, supostamente, o povo está presente, constata-se na generalidade este fenómeno curioso: aquele povo não existe, é a imagem deformada obtida pelos escritores que vão à província ver os camponeses como os curiosos vão a um jardim zoológico ver os animais. a prova: na maioria, na grande maioria dos romances portugueses, os personagens populares são postos a falar com empolamento académico, ou então com a ênfase pesada dos maus dramas de teatro. Mais: aquela linguagem não é a sua, autêntica e rude. Nada disso: é uma linguagem que o escritor inventa, pedante, a mentir na sintaxe e nos sentimentos. A ponto que com os romances portugueses sucede o seguinte: não parecem ter sido escritos para serem lidos, ou com a intenção profunda de, ao agitar um problema da sociedade, causarem uma mudança ou corrigirem uma injustiça, mas simplesmente para que o autor possa dar entrada naquele grupo de eleitos que se julgam diferentes, e daí melhores.
Mas o povo, mesmo inculto, quase analfabeto, não se deixa iludir nem impressionar, e os escritores portugueses bem poderiam atentar no facto bizarro de que há mais de cem anos "as massas"- como agora lhes chamam - apenas conhecem e compram dois livros: Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco (1825-1890), um grande escritor do Romantismo com raízes populares que não mentem; e Rosa do Adro, de Manuel Maria Rodrigues (1847-1899), do qual um dicionário de literatura diz com superioridade: "Romance popular de grande voga, exemplo típico da falsa literatura regional, obra sub-literária até na linguagem".
Caso para dizer: olha quem fala. E será assim, visto pelos olhos académicos, não vamos discutir aqui critérios de classificação literária. É sintomático, porém, que o povo se identifique com obras de sub-literatura, datando de há mais de um século, e ignore tudo de um Neo-Realismo que, supostamente, espelha as suas alegrias e dores."
in Portugal, a Flor e a Foice - Quetzal 2014