Passados
oito meses de ausência amanhã volto à minha aldeia, mas a viagem será bem diferente
da que fiz em Março de 1964, depois de mais de uma década de desterro
voluntário.
Por boa sorte e muito
trabalho, desde há algum tempo a vida corria-me tanto de feição que perdera o
medo dos fins do mês e das ameaças do fisco, de modo que um belo dia me pude
dar ao que era então verdadeiro luxo: comprar um carro. Nada de extravagâncias,
porque não me está na maneira de ser, mas também porque a aprendizagem de como
pode ser dura a realidade da vida me deixara
vacinado para todo o sempre.
Foi assim que uma manhã,
num stand, apontei o Fiat 1500 de quatro portas que desde algum tempo trazia de
olho, paguei de contado, umas semanas depois, dando voltas pelas ruas de Amesterdão,
via finalmente realizado o sonho que acalentava desde que, ao redor dos sete ou
oito anos o senhor Artur, nosso vizinho e chofer da Ferreirinha, a histórica
firma de Vinho do Porto, me sentara a segurar o volante do seu camião,
mostrando como se apertava a corneta do cláxon.
“Ao menino e ao borracho
bota Deus a mão por baixo”, mas o provérbio de certeza é também válido para
ignorantes e desastrados, pois doutro modo não se explica que com a carta
tirada havia pouco, e coisa de mês e meio desde que tinha comprado o carro,
metesse nele a mulher, as filhas - então com dois, cinco, sete anos - e bagagem para dois meses de
férias, com uma vaga ideia das distâncias e do tempo preciso, levando por única
bússola os mapas Michelin.
No que respeita hotéis
esperava que os houvesse nos lugares onde decidíssemos pernoitar, o mesmo também
de bombas de gasolina e garagens, se bem que a probabilidade de avarias num
carro acabado de estrear me parecesse nula.
Mais de meio século
passado, dos episódios dessa viagem há um ou outro que de vez em quando vem à
tona, sobretudo por serem abissais as diferenças de conforto e segurança.
Nos quinhentos
quilómetros de Amesterdão a Paris, que hoje faço em pouco mais de quatro horas,
gastámos então dez, e porque de auto-estradas nada havia na Europa fora as que Hitler
construíra na Alemanha, custou-nos quatro dias para atravessar a França, com o
bónus de passarmos por uma infinidade de pitorescas vilas, aldeias, lugarejos, e o susto de em certas curvas lermos em letras
gordas o aviso de que ali tinham morrido sete pessoas, mais além ia a conta em
onze, que desde o começo do ano somavam já vinte e dois os acidentes, ou que os
quilómetros seguintes eram zona onde se tinham dado trágicos desastres.
Sem compreender o que era
aquele aparato de me ultrapassarem com sirenes, luzes a piscar e grandes
gestos, em duas ocasiões tive de pagar multa aos gendarmes que, postados numa
curva, me tinham visto passar sobre a faixa contínua.
A tortuosa travessia dos
Pirenéus tenho-a bem presente pela estreiteza da estrada, a infindável sucessão
de curvas fechadas, os muitos buracos no asfalto, e o incrível número de
camiões caídos nas bermas, alguns há tanto tempo abandonados que a ferrugem
lhes tinha comido a pintura.
Em Espanha, algures
depois de termos passado Burgos, espantou-nos um insólito povoado com três ou
quatro casas, só depois nos dando conta que a gente que ali vivia em extrema
pobreza tinha por moradia as muitas cavernas escavadas na encosta.
Na tarde desse mesmo dia
esperava-nos ainda uma surpresa mais estranha, quando fomos à procura de água
numa povoação a alguma distância da estrada. As ruas eram poucas, mas em
nenhuma vimos gente, cão vadio, coisa que parecesse café ou taberna. De fonte,
fontenário ou nascente de água, nada, o que em desespero me levou a bater a uma
porta. Silêncio total. O mesmo na seguinte e nas duas ou três que ainda tentei.
Talvez fosse por ser hora
de siesta, mas causou-nos aquilo um
tão pesado sentimento de hostilidade e
mau agouro que as crianças deixaram de se queixar.
Um feliz acaso fez-nos descobrir
Baltanás, onde nos mataram a sede, deram de comer, de dormir, a gente do
albergue mostrou-se tão simpática e acolhedora que aí teríamos demorado não
fosse a febre em que eu ia de rever a minha gente e a minha terra.
Fazia o possível por me
manter calmo, mas à medida que nos aproximávamos da fronteira crescia em mim o
desconforto, censurava-me de ter cedido a um ímpeto, não levando em conta o que
para a minha mulher e para as filhas ia ser mais que um choque cultural, talvez
mesmo um abalo demasiado forte e de consequências imprevisíveis, pois nada as
preparava para a grande mudança que
desde a paisagem aos costumes, aos hábitos, às formas de convivência, à comida,
e outra sensibilidade, em todos os aspectos as esperava.
O meu nervosismo ia
aumentando, a vista do primeiro painel a indicar a direcção de Vilar Formoso
foi um choque desagradável, de mau agouro o tom prepotente dos guardas-fiscais
a revistarem com demora a bagagem.
Pior, e ainda mais
autoritário, o cavalheiro da PIDE que sentado a uma mesa, cigarro pendurado nos
beiços, folheando distraidamente os passaportes, me interrogava com minúcia e sem
me encarar, tamborilando a espaços, como se as respostas que lhe dava o
irritassem e pusessem à prova a sua paciência.
A minha mulher assistia à
cena com surpresa e alguma preocupação, pois embora estivesse ao corrente das
diferenças entre as instituições do seu país e do meu, nada a preparara para o
confronto com a realidade. Por sua vez as crianças, sensíveis à estranheza do
lugar e ao modo hostil do funcionário, agarravam-se intuitivamente a nós em busca de protecção.
Finalmente, ainda sem me
encarar, o pide atirou-me os passaportes, e com um gesto desdenhoso, sacudindo
o braço como se nos enxotasse, apontou a saída.