domingo, março 24

A vista do precipício


Vai adiando, diz-se que talvez ainda sobre tempo, mas tem horas em que pagaria para poder fugir de si próprio, com a ideia de que se desconhece, possesso de medos que chegam não sabe donde, com intenções que nunca descobre.
Ignora quantos meses ainda terá fôlego, ou como tantas vezes antes vai cair no desalento. Só que desta seria final, não se vê capaz de limpar a lousa e recomeçar, trazer à lembrança os rostos, os nomes, os momentos, o que parecia certeza e era ilusão, noutras ocasiões certeza mesmo, com efeitos de cacetada.
Porque sabe que não há bóia a que se possa agarrar, força que o livre do garrote da memória, ou se ainda terá paciência para fingir que continua à espera do que nunca virá, pois só foi assim no sonho, a esperança de que pelo menos uma vez pudesse acontecer e encontrasse salvação.
Perde-se a rever, a recordar, fazendo inventários, tentando descobrir explicação para os altos e baixos, a querer lógica onde tudo parece contraditório, irreal, desnorteante. Os momentos que deveriam ser de repouso são de cansaço, impedem-no de ver claro em si próprio, nos outros, no que aconteceu e o que desejou, o que estava ao alcance, o que parecia real e era só miragem. Numa ou noutra altura quase consegue ver-se apenas no agora, um curto instante, esquecido das humilhações, da crueldade sua e alheia, das horas de desespero, do terror que dá a vista do precipício. Mas é alívio de pouca dura, o pensamento logo o devolve para o que foi, obriga-o a chamar o que quer esquecer, parecendo que assim o avisa de que tudo tem preço e terá de pagar.
O mais que guarda são vergonhas e sentimentos de culpa, como se fosse ele o alvo preferido de não sabe que poderes ocultos ou, tal um escravo numa galera, o tenham posto à sujeição de vontades alheias, que dispõem, o forçam a proceder de um modo razoável na aparência, insensato na prática.
Marcam-no ferretes de que não se livra, vexames que lhe mostraram como é fácil perder a cabeça, dar o passo irremediável. Umas vezes salvou-se por um triz, um negro de unha, noutras acudiram-lhe, desde então olha com pena para o rapaz que foi, o homem na meia idade, os medos que não conseguiu vencer, as aventuras que sonhou, a crueza das que viveu.
Sofreria menos se conseguisse parar o fingimento e calar as vozes que só ele ouve, pôr fim às imagens que desfilam sem descanso, como se a vida, pelo menos a sua, tenha de ser um repisar de raivas e misérias, lutas, esperas, decepções, armadilhas, escuridão, becos sem saída.