Meu caro Thomas,
Claro que me não são desconhecidos
os sonhos de me ver Todo-poderoso e acabar de uma vez para sempre com feriados,
aniversários e solenidades. De, à semelhança de Deus,
poder liquidar impunemente os que me mortificam e reduzir ao estado de zombie
os que me importunam. Ou, falhando tudo isso, ter os meios que permitem comprar
uma ilha longínqua no Pacífico e lá, monarca absoluto rodeado de prazer e
conforto, viver em dolce far niente.
As peripécias que me contas da tua Páscoa nas Ardennes justificariam de facto
duas ou três mortes. Mas na verdade, e embora a Polícia e o Código Penal não
possam evitar que se passe do desejo ao acto, a perspectiva de uma vida atrás
de grades chega para que a maioria de nós se contente com fantasias. Além
disso, devo dizer que na tua idade – vais fazer dezasseis? – não há nada de
alarmante em querer liquidar os pais. Eu próprio comecei a «matá-los» quando
tinha uns doze anos e, curiosamente, também por causa da Páscoa.
É certo que a Páscoa de então em pouco se pode comparar com a de hoje. Não
havia, por exemplo, o hábito de nessa altura do ano ir de férias e, ao
contrário de agora, o aspecto religioso certamente predominava sobre o profano.
Na Sexta-Feira Santa o interior das
igrejas era um mar soturno de panos e paramentos roxos, o Sábado de Aleluia
desordenava totalmente a vida doméstica com os preparativos das comezainas do
domingo da Ressurreição. Recebia-se ainda a visita do pároco, que vinha para
benzer as casas. Mal se ouvia a campainha do cortejo abria-se a porta,
espalhava-se um tapete de verdura na soleira, a família esperava em semicírculo
na sala. Enquanto o padre dizia a sua reza o sacristão retirava o óbolo,
discretamente colocado numa salva sob um guardanapo e, dada a bênção, era de
praxe que o sacerdote e os presentes comessem um petisco ou um doce e bebessem
um copo de vinho fino.
Dessas cerimónias guardo a recordação de padres entornados e acólitos tão
bêbados que, ao chegar a nossa casa, já vinham incapazes de segurar direito o
crucifixo do Senhor. E algumas vezes aconteceu que, na pressa de beber, até o
óbolo esqueciam, era eu que tinha de correr atrás deles com o dinheiro.
Mas a Páscoa era para mim, sobretudo, o tormento do fato novo. Por uma tradição
cuja origem desconheço, o mês antes era o da visita ao alfaiate, um velho
maricas que, nesse tempo sem pronto-a-vestir, lentamente me apalpava a anatomia
sob o aceitável pretexto de tirar a medida. E que para o fato ficar bem exigia
duas provas, por vezes mesmo uma terceira. Até que um dia, farto daquilo,
gritei que não queria fato novo. Mas como um puto de doze anos tinha então me-
nos direitos que os escravos da antiga Roma, meu pai levou--me ao alfaiate à
força, com a recomendação de que se abrisse a boca ele me cortava às fatias.
Claro que me poderia ter queixado, e
então creio que do pobre alfaiate não ficaria um
osso inteiro. Foi assim que, levado pelo estranho instinto que em nós manda,
preferi a solução visivelmente menos chocante, e pela primeira vez desejei a
morte de meu pai.
Por isso te digo que não te perturbes, nem tenhas remorsos dos teus
sentimentos. Desde a Grécia clássica e passando por Freud, por mim, por ti, e
pelos muitos que hão-de vir, o viver é um encadeamento de «assassinatos» que
felizmente se não cometem.
(in Mazagran – Quetzal, 2012)