A cirurgia ao cérebro foi há uma semana. Houve complicações, o Leonardo continua no hospital, faz o que pode para suportar a rotina, ouvir as visitas, manter-se calmo com os queixumes de Sofia, cara-metade que trinta anos passados levou ao altar.
Dos votos tinha ele resmungado o da fidelidade, no mesmo instante a pensar na Judite, que deveria estar ali, não fosse ser ela beldade sem vintém, enquanto do pai de Sofia, por alcunha o “Rei do Ferro”, se dizia ter pacto com o Diabo, pois só assim se explicava que a sucata o fizesse milionário e os concorrentes caíssem na falência.
No quarto do hospital, a olhar a esposa mas distraído do que ela diz, tem de súbito a sensação de que se desprende da cama. Não se assusta, deve ser da narcose, e de novo apalpa o colchão a certificar-se do engano. Porém, embora finja prestar atenção ao que ouve, tem de novo o mesmo sentimento de que se está a desprender, agora com mudança de ambiente.
Vê-se numa igreja perto do altar, à sua frente um padre paramentado numa atitude de espera, um acólito a segurar uma bandeja com duas alianças. Não há ali noiva, nem público, o silêncio quebrado de súbito pela pergunta do sacerdote:
- Aceita Sofia para sua legítima esposa? Promete...
Retoma os sentidos, no quarto há mais gente, aparelhagem, tubos, médicos que não conhece, enfermeiras sorridentes.
- Foi um susto – diz Sofia acariciando-lhe a face – Começaste a gritar Não! Não! O doutor diz que durante uns minutos estiveste no outro lado! Sentes-te bem?
Encara aquela mulher com genuína surpresa e sorri-lhe, perguntando-se quem será e o que terá acontecido para se ver ali.