quarta-feira, fevereiro 23

A inspecção militar

 

Hoje é uma recordação surrealista e cómica, mas nesse momento foi experiência traumática o ver-me à entrada do salão nobre da Câmara, num grupo de rapazes nus e a tiritar, esperando que lá do fundo nos chamassem. Sobre um estrado, sentados atrás da mesa presidencial, dois médicos de bata branca ladeavam um coronel façanhudo, cuja farda reluzia de distintivos e condecorações.

O coronel olhava uma folha, resmungava qualquer coisa a um sargento que, com outro papel na mão, se achava a meio caminho entre nós e a mesa. O sargento gritava então os nomes num estentor de parada.

Com o choque de me ver nu e desamparado, ao entrar mal reparei na monumentalidade do salão, buscando conforto no pensamento de que por sermos tantos, demoraria a chegar a minha vez de tomar parte naquele estranho desfile de modelos.

Preocupado em encontrar uma pose natural que me permitisse dissimular a «ferramenta» sem ter de pôr as mãos a fazer de folha de figueira, desatendi do que se passava lá ao fundo, até que de súbito me vi à frente, mais desprotegido que antes.

O que me precedia, um magricelas alto e desengonçado, caminhava lentamente sobre a passadeira vermelha, dando a impressão de cambalear.

– Ó menina! – berrou o coronel. – Despache-se! Não estamos aqui a fazer sala! Levante a cabeça, sacuda esses braços!

O rapaz parou diante da mesa, encolhido, intimidado. Via-se-lhe tremelicar a pele flácida das nádegas, e certamente lhe perguntavam qualquer coisa, mas como era longe não se

distinguia mais que o murmurar das vozes.

Um dos médicos aproximou-se dele, levantou-lhe o queixo, passou-lhe a mão pelas costas, batucou, auscultou, examinou-lhe os joelhos, fez-lhe levantar os pés. Inesperadamente ouviu-se um grito medonho de dor, e enquanto o médico voltava ao seu lugar, o rapaz dobrado em dois saía pela porta do fundo.

– Aquilo foi o aperto dos colhões – disse alguém atrás de mim, ao mesmo tempo que o sargento gritava o meu nome. Indiferente ao forte desejo que eu sentia de permanecer imóvel ou desfazer-me em fumo, o meu corpo pôs-se a caminho da mesa em passo rápido, cabeça erguida, sacudindo energicamente os braços.

O coronel perguntou-me o nome, a data de nascimento, a filiação, a morada, e ia conferindo as minhas respostas com o papel. Ao dizer «Está certo» o mesmo médico levantou-se e veio direito a mim. Com um objecto de metal que me meteu entre os dentes fez-me baixar a língua, depois levantou-me o queixo, examinou-me as pálpebras, apertou-me os bíceps, batucou- me as costas, raspou-me a sola dos pés com um instrumento agudo, quis saber se eu sofria de doenças. Claro que sofria e ensaiara o bastante para ter a resposta pronta: – Vejo muito mal e sofro de dores no peito e na espinha.

Ele resmungou para a mesa um latim qualquer, entortou-me o pescoço, socou-me as omoplatas, fez-me curvar, endireitar, de novo para um lado, de novo para o outro, e agachando-se à minha frente agarrou-me inesperadamente os testículos, machucando-os com tal bruteza que de um golpe se me foi o ar dos pulmões. Mas não gritei.

 

 (Excerpto de O Hospital Militar in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal,2011)