domingo, setembro 19

Problemas do coração

 

É aborrecido repeti-lo, cada um é como nasce, mas às vezes pequenos acontecimentos na infância vão determinar o comportamento futuro, e esse é o caso do Mateus, pois com cinquenta e dois anos feitos no passado domingo e malgrado ser conhecido como pessoa equilibrada, tem desde a infância uma relação de pânico com tudo que tenha a ver com electricidade.

Assusta-se ao ligar um aparelho, olha desconfiado ao carregar num interruptor, não esperem que mude uma lâmpada fundida, ou quando falha a luz vá ao quadro ver se o problema é dos fusíveis.

Esse medo ganhou-o ele na noite do aniversário dos seus dez anos, em que finalmente o avô cumprira a promessa de lhe oferecer um espectacular combóio eléctrico e o mais que pertencia de carris, bonecada, viadutos e estações.

Abrir aquelas caixas já tinha sido excitação de sobra, mas começou a tremer quando o avô lhe pôs a ficha na mão e disse que a metesse na tomada. Agachou-se, porque a tomada era junto do soalho, mas por muito que se esforçasse não conseguia introduzi-la, e como o avô não podia ajudá-lo porque estava a telefonar, decidiu que aquilo deveria ser porque os buracos da tomada eram estreitos, e na sua inocente ignorância e pressa pareceu-lhe que com a tesoura que estava ao seu lado os poderia alargar.

Foi um estrondo de explosão, ficou a casa às escuras, ao saltar-lhe das mãos a tesoura rasgara-lhe o queixo, ouviam-se berros, gente a correr, demorou a que a luz voltasse, mas finalmente tudo se compôs e como era o dia dos seus anos nem sequer o reprenderam.

Mas para ele o trauma ficou e agudizou-se dias atrás, quando foi à consulta que tinha marcado e a doutora Maria José, a sua médica de família, ao constatar uma arritmia cardíaca nem lhe deu a escolher nem tempo para pensar, marcava já no hospital uma cardioversão eléctrica.

Conta ele que a surpresa foi tão abrupta que realmente ficou sem ar, sem fala, e ao vê-lo assim a doutora se levantou, foi sossegá-lo, pedindo-lhe que acalmasse, era um tratamento simples, muito eficaz.

Desde então não descansa nem se atreve a decidir. Bem lhe dizem que é sem qualquer perigo e  na maioria dos casos dá bom resultado. Deitam-no, dão-lhe a anestesia, ligam-no à aparelhagem, nada sentirá dos choques eléctricos e a probabilidade é grande que o seu coração recupere o ritmo normal, diminuindo assim grandemene a probabilidade de um ataque cardíaco.

- É o que eles dizem – sussurra o Mateus – mas quem me garante que é sem perigo? São choques eléctricos e não sinto nada?