domingo, setembro 5

O porto de Marselha

 

É lei da vida, pelo que não deveria ser surpresa, mas um atrás doutro vão desaparecendo do nosso convívio aqueles que por razão da sua personalidade, pitoresco dos hábitos, ou porque destoavam com as suas manias, faziam parte do dia-a-dia, e mesmo quando uma vez por outra se tornavam cansativos nada custava desculpá-los ou, como alguns ainda dizem, passar a esponja sobre o assunto.

Bico-de-obra no particular do Carlos Varizo, que em Maio entregou ao alma ao Criador. Aborrecido nele era referir-se à progenitora como "a mamã", o que num cinquentão soava a vício, mas esse infantilismo fazia sorrir e facilmente se lhe perdoava. Custoso era aturá-lo no minucioso relato da sua estadia em Marselha, quando o navio em que então andava embarcado teve uma avaria, e ele ficou lá dois meses, com poucos afazeres e tempo de sobra para explorar uma cidade onde nunca estivera, e de que só conhecia a má fama que lhe davam alguns filmes e um romance de Simenon, que se lembrava de ter lido ainda rapaz.

Equipado com esse pouco, e porque na tripulação não tinha amigos, deitara-se sozinho a explorar a cidade, e então o ouvi-lo, ou melhor o aturá-lo, requeria uma paciência que poucos tinham, virando-lhe as costas quando recomeçava a descrever as vistas, a barafunda do Vieux Port, a impressão de participar num filme, as ruas e os becos apinhados de figuras exóticas, em muitos rostos um ar de ameaça.

Os que por amizade ou cortesia continuavam atentos, sabiam que chegado o momento em que referia esse "ar de ameaça", fazia uma pausa a modo de quem suspende a respiração antes de empurrar uma porta, e "entravam" com ele no bar onde Chantal lhe sorrira, o iniciaria no apreço do pastis e, nas semanas que depois tinham passado juntos, dado prova que se fossem todas de igual calibre, nas artes da cama as francesas eram imbatíveis.

A afirmação sublinhava-a ele com um sorriso de connaisseur,  indiferente a que sendo ali o único solteiro, causasse nalguns um certo acanhamento, e noutros o sorriso amarelo que disfarça a intenção de reagir à bruta.

Curioso é que desde que o levámos à última morada, parecemos inclinados a retocar a imagem que dele tínhamos, eliminando pouco a pouco as bizarrias do seu carácter, como o pasmo de ter visto tanto cartaz de Marine Le Pen e o apreço que lhe merecia a luxúria das francesas.

Sobre o que os outros pensam e como agem não me vou pronunciar, mas às vezes tenho a impressão de que sem o dizer ainda alto e bom som vamo-nos vergando à nova censura.