sexta-feira, junho 12

A decadência da procissão


Este texto foi publicado a primeira vez no semanário neerlandês Elsevier em 17 de Março de 1993.
Repesco-o agora sabe Deus por que saúdade de um tempo em que eu ainda tinha ilusões.

O leitor sabe que Lisboa é a capital de Portugal, mas se num quiz lhe perguntarem sobre qual será pelo número de habitantes a segunda cidade portuguesa, provavelmente não acerta. Com mais de 900.000 portugueses, Paris é a resposta correcta. O Porto nem sequer é a terceira cidade, pois Johanesburg leva-lhe a palma, seguida talvez de Caracas. Quase 1 milhão de portugueses vivem entre o Rio de Janeiro e São Paulo, e cerca de 12% da população do Luxemburgo nasceu em Portugal.
Anotam-se aqui esses números por serem eles a indicação concreta de um fenómeno que desde o séc. XV marca a sociedade portuguesa: a emigração. No começo da década de 60 deste século a partida de homens válidos tomou proporções ca­tastróficas, com  consequências agora visíveis no abandono das povoações. Os anciãos são praticamente os seus únicos habitan­tes e só duas vezes por ano, no Natal e na festa do padroeiro, é que as aldeias parecem recobrar vida. Nessa altura os emi­grantes regressam para visitas que, embora de pouca dura, afectam profundamente as tradições. 
É de lamentar que quase tenha desaparecido a festiva matança do porco e que as famílias não cozam o pão. Atrista também que as bodas tenham deixado de ser uma festa caseira e se realizem cada vez mais em restaurantes. Ao fim do banquete, segundo hábito visivelmente importado, para ajudar à despesa é costume fazer-se o leilão da gravata do noivo e do vestido da noiva, que vão sendo cortados em bocados pequenos ou grandes, conforme o dinheiro que os presentes oferecem pelo corte.
Profunda e radical é a transformação das procissões religiosas. Já raramente se assistirá a uma procissão como há vinte ou trinta anos, quando os andores eram levados ao ombro pelos atalhos da serra e os fiéis não hesitavam em segui-los de joelhos. Porque os homens se negam a carregar grandes pesos, os andores dos santos são agora postos em cima de tractores. O padre, esse raro vai a pé como antigamente, rezando as suas orações sob o pálio. Primeiro porque para segurar um pálio são precisos seis ou oito homens fortes, e onde os há? Como é uso moderno - testemunhei-o com surpresa no Verão -  o padre prefere montar um altofalante no seu carro e, microfone numa mão, a outra a segurar o volante, ele vai guiando ao mesmo tempo que reza os padre-nossos e avé-marias. Os devotos que o seguem a pé fazem o responso. Atrás dos devotos, os tractores com as imagens. Entre os tractores vão os anjos. Mas anjos deste tempo, vestidos à trouxe-mouxe, a maioria sem asas, porque se queixam que elas são pesadas demais e ainda por cima magoam ou fazem cócegas. Ladeiam-nos gladiadores da mesma idade, com nikes e espadas de lata. São Jorge, sem cavalo, arrasta um dragão de papel. Acompanha-o um São Lourenço, carregando uma miniatura da grelha em que no ano de 258 foi assado o mártir romano.
Sendo poucos os homens, e desses poucos raros os crentes, por vezes custa achar quem figure de Cristo. Então qualquer mulher serve e lá vai ela à minha frente, coroa de espinhos na cabeça, cruz de madeira às costas, representando o Salvador a caminho do Calvário. Repreendendo os gracejos, uma “'filha de Maria” faz  saber que no “exército do Senhor não se distinguem sexos. Somos todos iguais.”
A passo, atrás do último tractor, a banda de música toca marchas fúnebres, as que melhor acom­panham o andamento. Quase na cauda do cortejo a novidade mais recente e mais ousada: as “majorettes.” Numa procissão que se preze de moderna não pode faltar o grupo de “majorettes”. Vi-as eu marchar indiferentes ao ritmo da banda, marciais, erguendo alto os joelhos, fazendo revirar os bastões, a saracotear as ancas de tal modo que o grupo de curiosos que fechava a marcha tinha mais olhos para aquele show ingenuamente erótico, que pensamentos de devoção.
Chegado o préstito à capela, no alto do monte, o sacerdo­te  desenlaçou-se do microfone, saiu do carro, ajeitou a sobrepeliz e encaminhou-se para dizer a missa e pregar. Segui­ram-no os figurantes da procissão, as viúvas, os velhos, os doentes e os músicos. O resto espalhou-se por entre as árvor­es, abriu o cesto da merenda, ligou o rádio, refeiçoou, dei­tou-se à sombra. Por fim a banda atacou um pasodoble a assin­alar o encerramento da cerimónia e houve um ligeiro reboliço. Jesus Cristo foi pousar a cruz contra o muro, arregaçou a saia e sentou-se a merendar com a família. Deram coca-cola aos anjos. As “majorettes” alinharam  defronte dum senhor que lhes queria tirar a fotografia. Com o esforço da digestão, o vinho e o calor, poucos tinham resistido ao sono e eram tantos os corpos estendidos pelo terreiro que parecia uma hecatombe. “Fé vai havendo - disse-me o chefe da música, olhando em volta - mas por este andar a religião um dia acaba!”