Este texto foi publicado a primeira vez no semanário neerlandês Elsevier em 17 de Março de 1993.
Repesco-o agora sabe Deus por que saúdade de um tempo em que eu ainda tinha ilusões.
O leitor sabe que Lisboa é a capital de Portugal, mas se
num quiz lhe perguntarem sobre qual será pelo número de
habitantes a segunda cidade portuguesa, provavelmente não acerta. Com mais de
900.000 portugueses, Paris é a resposta correcta. O Porto nem sequer é a
terceira cidade, pois Johanesburg leva-lhe a palma, seguida talvez de Caracas.
Quase 1 milhão de portugueses vivem entre o Rio de Janeiro e São Paulo, e cerca
de 12% da população do Luxemburgo nasceu em Portugal.
Anotam-se aqui esses números por serem eles a indicação
concreta de um fenómeno que desde o séc. XV marca a sociedade portuguesa: a
emigração. No começo da década de 60 deste século a partida de homens válidos
tomou proporções catastróficas, com
consequências agora visíveis no abandono das povoações. Os anciãos são
praticamente os seus únicos habitantes e só duas vezes por ano, no Natal e na
festa do padroeiro, é que as aldeias parecem recobrar vida. Nessa altura os emigrantes
regressam para visitas que, embora de pouca dura, afectam profundamente as
tradições.
É de lamentar que quase tenha desaparecido a festiva
matança do porco e que as famílias não cozam o pão. Atrista também que as bodas
tenham deixado de ser uma festa caseira e se realizem cada vez mais em
restaurantes. Ao fim do banquete, segundo hábito visivelmente importado, para
ajudar à despesa é costume fazer-se o leilão da gravata do noivo e do vestido
da noiva, que vão sendo cortados em bocados pequenos ou grandes, conforme o
dinheiro que os presentes oferecem pelo corte.
Profunda e radical é a transformação das procissões
religiosas. Já raramente se assistirá a uma procissão como há vinte ou trinta
anos, quando os andores eram levados ao ombro pelos atalhos da serra e os fiéis
não hesitavam em segui-los de joelhos. Porque os homens se negam a carregar
grandes pesos, os andores dos santos são agora postos em cima de tractores. O
padre, esse raro vai a pé como antigamente, rezando as suas orações sob o
pálio. Primeiro porque para segurar um pálio são precisos seis ou oito homens
fortes, e onde os há? Como é uso moderno - testemunhei-o com surpresa no Verão
- o padre prefere montar um altofalante
no seu carro e, microfone numa mão, a outra a segurar o volante, ele vai
guiando ao mesmo tempo que reza os padre-nossos e avé-marias. Os devotos que o
seguem a pé fazem o responso. Atrás dos devotos, os tractores com as imagens.
Entre os tractores vão os anjos. Mas anjos deste tempo, vestidos à
trouxe-mouxe, a maioria sem asas, porque se queixam que elas são pesadas demais
e ainda por cima magoam ou fazem cócegas. Ladeiam-nos gladiadores da mesma
idade, com nikes e espadas de lata. São Jorge, sem cavalo, arrasta um
dragão de papel. Acompanha-o um São Lourenço, carregando uma miniatura da
grelha em que no ano de 258 foi assado o mártir romano.
Sendo poucos os homens, e desses poucos raros os crentes,
por vezes custa achar quem figure de Cristo. Então qualquer mulher serve e lá
vai ela à minha frente, coroa de espinhos na cabeça, cruz de madeira às costas,
representando o Salvador a caminho do Calvário. Repreendendo os gracejos, uma “'filha
de Maria” faz saber que no “exército do
Senhor não se distinguem sexos. Somos todos iguais.”
A passo, atrás do último tractor, a banda de música toca
marchas fúnebres, as que melhor acompanham o andamento. Quase na cauda do
cortejo a novidade mais recente e mais ousada: as “majorettes.” Numa procissão
que se preze de moderna não pode faltar o grupo de “majorettes”. Vi-as eu
marchar indiferentes ao ritmo da banda, marciais, erguendo alto os joelhos,
fazendo revirar os bastões, a saracotear as ancas de tal modo que o grupo de
curiosos que fechava a marcha tinha mais olhos para aquele show ingenuamente
erótico, que pensamentos de devoção.
Chegado o préstito à capela, no alto do monte, o sacerdote desenlaçou-se do microfone, saiu do carro,
ajeitou a sobrepeliz e encaminhou-se para dizer a missa e pregar. Seguiram-no
os figurantes da procissão, as viúvas, os velhos, os doentes e os músicos. O
resto espalhou-se por entre as árvores, abriu o cesto da merenda, ligou o
rádio, refeiçoou, deitou-se à sombra. Por fim a banda atacou um pasodoble
a assinalar o encerramento da cerimónia e houve um ligeiro reboliço. Jesus
Cristo foi pousar a cruz contra o muro, arregaçou a saia e sentou-se a merendar
com a família. Deram coca-cola aos anjos. As “majorettes” alinharam defronte dum senhor que lhes queria tirar a
fotografia. Com o esforço da digestão, o vinho e o calor, poucos tinham
resistido ao sono e eram tantos os corpos estendidos pelo terreiro que parecia
uma hecatombe. “Fé vai havendo - disse-me o chefe da música, olhando em volta -
mas por este andar a religião um dia acaba!”