quinta-feira, abril 16

Inveja

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Vi há dias um programa da televisão holandesa em que garotos geniais resolviam em segundos problemas que me deixavam transtornado, não só por incompreensão do assunto, mas pela celeridade com que, saltando de uma fase para a seguinte, eles chegavam ao resultado, enquanto que eu magicava ainda sobre a relação entre o facto de Beatriz fazer anos a 19 de Julho, a mãe viver no nr. 32 doutra rua e o namorado vir de Bruxelas aos sábados.
Desliguei, dizendo-me que aquilo não era para mim, mas de facto invejoso de não possuir um cérebro de igual calibre.
É fenómeno recorrente, essa inveja que me assalta cada vez que me dou conta de como as minhas possibilidades tantas vezes ficam aquém dos meus desejos. Assim, por exemplo, mau grado numa universidade ter passado mais de trinta anos a ensinar e a espiolhar as literaturas portuguesa e brasileira, de em oito décadas ter lido uma apreciável quantidade de livros e publicações, de ter à minha conta dúzia e pico de obras ditas literárias, continuo incapaz de numa entrevista, em simples conversa, ou num discurso, me exprimir "à escritor".
Ignoro em que fontes alguns bebem a inspiração, em que suculentos tratados buscam ideias e vocabulário, ou que divindade lhes oferta tão soberba inteligência, certo é que digerida a melancolia da minha ignorância me toma uma irreprimível inveja.
O jovem e talentoso colega, de quem é o período que segue, não se dará conta em que estado me deixou: metaforicamente estatelado, a cabeça a zunir, perguntando-me por que razão o Todo Poderoso a uns dá tanto e deixa outros à míngua.

«A libertação da arte em relação à obrigação de representar, ou de apresentar cabalmente o seu significante, é fundamental para adentrar um espaço mental, que não deixa de ser também uma dimensão da realidade, caracterizado por uma imprecisa questão para uma ainda mais imprecisa resposta. Chegar à questão é o desafio, obter alguma resposta é a absoluta improbabilidade.».