O “vinho americano” vendia-se então às escondidas. E porque era ilegal, sabia bem. Os lavradores faziam-no com as uvas das castas importadas da América nos fins do séc. 19 e resistentes à filoxera.
Nos anos remotos da minha infância a posse dessas videiras era proibida (a Guarda Republicana tinha ordem de as arrancar, mas quase sempre fechava os olhos) a feitura do vinho idem, a venda do mesmo sujeita a fortes multas.
Por isso o negócio do “vinho americano” florescia. Creio que hoje a proibição continua, e as leis de Bruxelas são mais estritas, além de que, ao que parece, o “vinho americano” é mau para a saúde. Mas se um destes dias você passar pelas terras do vinho verde, informe-se discretamente sobre o “vinho americano”. Se o conseguir encontrar, prove-o, e apreciará o que, além do atractivo de fruto proibido, sempre tornou esse vinho tão distinto e peculiar: o seu incontestável cheiro a percevejo. *)
Como era de tradição, uns dias antes do Natal começavam a chegar a nossa casa os presentes oferecidos pelas firmas do Vinho do Porto. Regra geral uma ou duas caixas com garrafas de boa qualidade, e sempre algumas de “vintage”.
As caixas eram de madeira fina, as garrafas protegidas por uma capa de palha. Mas a mim não interessava o vinho, interessavam os brindes escondidos no fundo: saca-rolhas engenhosos, miniaturas de faiança, soberbas navalhas com cabo de osso. Dessas fiz colecção, mas um dia troquei-as estupidamente por um livro intitulado Orgias no Convento, de leitura decepcionante e com gravuras que nada acrescentaram à ciência que eu já então possuía.
Hoje os fortificantes compram-se na farmácia e têm o sabor artificial que lhes dão na fábrica. In illo tempore a gemada era o fortificante ideal e universal. Dava-se aos bébés, às crianças, aos convalescentes, aos velhos, às grávidas, aos tuberculosos e aos que sofriam de humores sombrios.
Se a desconhece não perderá nada em experimentar a receita, modelar na sua simplicidade: bata quatro gemas de ovo com quatro colheres de açúcar, junte dois cálices cheios até à borda de vinho fino, remexa e beba.
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*) Haverá ainda quem reconheça o cheiro do percevejo?