Porque o trabalho era muito e os braços poucos, o monte de mosto seco ficava tempos à espera de ser distilado. Finalmente uma manhã - na minha recordação manhãs em que o ar tinha já uma frescura de Outono - o alambique era instalado e atestado, as caldeiras preparadas, a fogueira acesa, o garrafão posto na ponta do cano.
Os homens traziam banquinhos para se sentar e esperavam pacientes, enquanto as gotas de aguardente caíam uma a uma, límpidas como chuva de Inverno. Depois vinha a prova. Para a maioria em jejum. O copo passava de mão em mão, e dele bebiam grandes, pequenos, as mulheres que adregavam passar, os anciãos que tinham fé no poder da aguardente nova.
De facto a aguardente conta por muito na cura das minhas constipações da infância. De cada vez que começava a tossir e a ficar ranhoso, metiam-me na cama e na mesinha de cabeceira, num prato fundo de esmalte, era deitada uma generosa quantidade de aguardente.
Aquecia-se o prato à luz duma vela e o líquido era de seguida incendiado com um fósforo.À medida que ardia juntavam-lhe lentamente, mexendo com uma colher, algumas gotas de sumo de limão e umas cinco ou seis colheres grandes de açúcar. Assim que a chama começava a diminuir tapavam-na com outro prato para que se apagasse. O líquido, amarelado, licoroso, deliciosamente doce, era depois deitado numa xícara e bebido devagar. Daí resultavam fortes suores e um longo sono reparador a que nenhuma constipação resistia.
O largo onde nasci, em Vila Nova de Gaia, tinha a vantagem de se situar num montículo com um esplêndido panorama. Ao mesmo tempo dir-se-ia uma ilha rodeada por um mar de telhados, os dos grandes armazéns onde envelheciam, envelhecem ainda, milhões de garrafas do Vinho do Porto. Em muitos desses telhados achavam-se escritos em letras desmesuradas os nomes das firmas proprietárias. Eu, criança, soletrava-os mesmerizado, supondo mágica na estranheza das suas grafias: Kopke, Cálem, Cokburn, Ramos Pinto, Ferreirinha, Gonzalez Byass, Delaforce, Morgan, Niepoort...
Muitas das mulheres pobres da vizinhança ganhavam o pão como engarrafadeiras, trabalho que só parecia leve porque passavam o dia sentadas a arrolhar numa maquineta as garrafas que lhes iam pondo diante. Para que nenhuma caísse na tentação de beber da garrafa antes de a arrolhar, envolvê-la em palha e metê-la na caixa, o controle era estrito e o castigo o mais pesado: olho da rua sem perdão, nenhuma esperança de encontrar de novo trabalho semelhante.
Os capatazes concediam-lhes, contudo, um privilégio: garrafa que quebrasse no arrolhamento podia ser bebida. E pelo dia adiante quebravam-se umas quantas. Por isso ao fim da tarde, quando saíam do trabalho, na calçda que levava dos armazéns ao nosso largo só se viam mulheres bêbadas. Caminhavam aos bordos, davam gargalhadas insanas, iam de braço dado, disfarçando a tontura da bebedeira com passos de dança.
De vez em quando uma tropeçava, estatelava-se, erguia-se dando palavrões. Algumas sentavam-se um momento no passeio, sem decoro, as pernas abertas, a cabeça pendente, até que uma companheira mais sóbria as vinha puxar.
Eu, que a essa hora voltava sozinho da escola, caminhava fascinado e temeroso rente à parede.