O lagar, feito de pedras de granito, parecia-me então colossal. Ficava no rés-do-chão, com uma só janela, numa casa que servia para arrumações e onde, de longe a longe, morava algum casal jovem no aguardo de melhor pouso.
As uvas eram atiradas pela janela directamente para o lagar, que não demorava a ficar cheio. Começava então a pisa. Nesse tempo trabalho só para homens e feito à noite. As calças arregaçadas, caminhavam lentamente em redor, num ritmo monótono. De vez em quando aparecia alguém com uma guitarra, mas em geral, exaustos pelas horas que tinham passado curvados ao sol na vindima, moviam-se em silêncio. Fumavam muito e aparavam na mão a cinza do cigarro.
Nós, a garotada, ficávamos sentados no muro do lagar, depenicando as uvas que ainda havia nos cestos, fazendo sombras chinesas à luz dos lampiões. Mal havia sumo empanturrávamo-nos com canecadas dele.
Ao terceiro ou quarto dia da pisa o mosto começava a “ferver”. Então – “com a força que tem, o mosto a ferver cura tudo” - enquanto os homens o remexiam com pás de madeira, as mães alinhavam no lagar os pequenitos mais fracos, ou os que andavam cobertos de borbulhas e, nus em pêlo, depois de uma lavadela eram passados por cima do muro aos homens que os mergulhavam no lagar. Uma vez, duas vezes, três vezes. Só a cabeça ficava de fora. Uns choravam. Outros, com o susto, abriam a boca que se lhes enchia de engaços, cascas e grainhas.
A minha hora também chegou. Num ano em que à família pareceu que me viam amarelado e escrofuloso, despiram-me, lavaram-me e passaram-me para as mãos dum tio-avô que, carinhosamente, me fez mergulhar até ao pescoço.
Eu, que ao vê-los chorar os tinha tratado de “cagões” e “maricas”, mal me dei conta de ter ao rés dos olhos aquela imensidão de líquido pegajoso, que borbulhava como coisa viva e me ia engolir, soltei gritos tão lancinantes e esperneei de tal modo que não me deram o terceiro mergulho. Mesmo assim o remédio teve efeito.