O facto primeiro, talvez o mais marcante, é o de que, ao criar o seu mundo, o holandês logo deu mostras de que a separação original das águas e da terra, descrita no Génesis, lhe parecia susceptível de melhoria.
Que essa inventividade lhe tenha cabido por graça divina, ou ele a tenha simplesmente desenvolvido por iniciativa própria, é questão menos interessante que a de considerar o emprego que, através dos tempos, ele fez de um tão inato pragmatismo.
Se nos anais escasseiam as fontes que nos informem sobre os seus tempos primevos, a evolução do holandês acha-se excelentemente documentada desde que deu início à batalha contra os elementos, tornando-se, como se sabe, mestre na prática de tirar benefício do formidável poder dos seus inimigos naturais.
Porém, como se essa luta de certo modo lhe tivesse exaurido a capacidade de combater, a partir do momento em que reteve a água com os diques, e conseguiu domar o vento com as pás dos moinhos, transformou-se ele num ser cuja preocupação dominante parece residir num permanente anseio de paz, e a incondicional mantença de harmonias.
Poucos povos se poderão orgulhar, como este, de uma história em que sejam tão poucos os ataques: uma ou duas as invasões; que no seu chão não consigam pegar as raízes daquele tipo de nacionalismo que descamba em barbárie; que talvez só no Oriente se pratique com refinamento igual a arte do compromisso e do consenso.
Contudo, no desleixado mundo em que vivemos, as virtudes e a realidade podem menos que o cliché. E o cliché retrata o holandês como um indivíduo por natureza reservado e sombrio, incapaz de paixão, incómodo no trato. O estereótipo quer também que a sua Holanda seja apenas o país onde ele, calçado de tamancos, numa mão o copo de cerveja e na outra o arenque, caminha lentamente por entre campos coloridos de tulipas.
Felizmente que contra o lugar-comum há antídotos, e o mais eficaz é por certo o de aprender a ver com o coração. O holandês e a Holanda ganham então dimensões que não suspeita quem, apressadamente, superficialmente, apenas sabe ver com os olhos.
E aqui falo por experiência. Uma época houve em que eu próprio tive do país e dos seus habitantes essa estereotipada imagem de buchos-de-cerveja, cabeças-de-queijo, vacas leiteiras atropelando-se numa paisagem feita só de horizonte, ponteada aqui e além por um vulto de moinho.
Mas os deuses foram benévolos comigo e deram-me tempo. Cinquenta anos. Tempo bastante para que aprendesse a ver e me curasse da insensibilidade. Para deixar que o que aos meus olhos parecera informe ganhasse contorno, o aparentemente vulgar desvendasse um refinamento. Para que eu fosse capaz de discernir a sabedoria por detrás do tédio, e de descobrir que as emoções profundas não necessitam, forçosamente, de grandes gestos ou palavras ribombantes.
Claro que Rembrandt, o genial Van Gogh, sempre tinham sido para mim mais que simples nomes ou referências. Esses e outros, porém, colocava-os eu fora do contexto a que pertenciam: eram mundiais, demasiado grandes para a Holanda da deformada imagem de leite, queijo e chateza que eu então me fazia dela. Mas também aí a força da realidade se foi sobrepondo à ignorância, ou melhor: à minha descuidada maneira de ver. Até ao dia em que a visão, ajustando-se, conseguiu finalmente tornar nítido o que até então lhe aparecera difuso e de pouco interesse.
Não aconteceu de um dia para o outro, nem foi como nos milagres ou nas grandes revelações: em parte nenhuma soaram trombetas, não houve relâmpagos a iluminar o céu, não apareceram vultos a fazer anúncios. Mas com uma satisfação igual à que devem ter ressentido os navegadores do passado, gradualmente dei-me conta de que conseguira “descobrir” outra Holanda, a verdadeira. Que entre mim e ela se estreitavam os laços que tanto tempo tinham permanecido frouxos. Nesse momento, fosse eu poeta, tê-la-ia cantado numa ode.