Uma recordação de Fevereiro de 2004
Grande descanso dá a ignorância. Vivia eu pouco mais sabendo de Luís Figo que o que apanhava na leitura breve e desinteressada dos cabeçalhos dos jornais. Que era talentoso na sua arte. Que ganhava com os pés as quantias mirabolantes que nem se atreve a sonhar quem, por instrumento, só tem a cabeça. Que quase causara uma revolta quando, com mais proveito do que Judas o fez a Cristo, atraiçoara Barcelona, mudando-se para Madrid.
Recordo também ter visto uma fotografia que o mostrava cercado de banqueiros sorridentes. Numa outra sorria ele a uma beldade que, informava a legenda, era sueca, loira e sua companheira.
Salvo uma outra aparição em cartazes publicitários, ou em fugidias imagens da tv, breve e distante como tinha entrado na minha vida, assim Luís Figo saiu dela. Pelo menos era o que eu julgava, quando de súbito, uma manhã de Dezembro passado, a sua presença se me impôs. De forma indirecta, é facto, mas nem por isso menos contundente.
Quem até há um ano ou dois atrás frequentou o aeroporto do Porto - aquele que, um pouco antes da aterragem dos aviões, as hospedeiras anunciam com o seu oficial e longo nome de “aeroporto Francisco Sá Carneiro” - recordará um edifício de dimensões modestas e ambiente provinciano, com um parque de estacionamento fronteiro às “Partidas e Chegadas” onde pouco mais caberia que uma centena de carros.
Com os preparativos para o Euro 2004 tudo isso mudou. O edifício, renovado, transformado, largamente aumentado, não ficaria mal numa metrópole, e no seu subsolo foi construída uma garagem para talvez mil carros, tão gigantesca que se perde a gente nela.
Numa manhã de Dezembro passado, pois, cheguei eu em grande pressa ao aeroporto do Porto, porque os meus netos corriam o risco de perder o avião que os levaria para Amsterdam.
Parei, expliquei a um dos polícias que rondavam por ali a minha aflição, esperançado, quase certo, de que ele compreenderia a urgência e a necessidade de, apenas por minutos, estacionar o carro junto da entrada, o tempo de levar as crianças e as malas até ao balcão.
Esperança vã. Cheio de autoridade, não me deu resposta nem sequer me encarou, e ainda eu não tinha acabado a explicação já ele fazia girar o cassetete para que me despachasse. Sem outro remédio despachei-me, dei a volta e, mudo de assombro, penetrei pela primeira vez na garagem subterrânea que desconhecia.
Com o choque quase esqueci a urgência que tinha e, olhando em redor, a primeira comparação que me ocorreu foi a de uma catedral. Mas uma catedral vista por olhos de criança. Dimensões esmagadoras.
O tempo, infelizmente, urgia, e eu não estava ali para me embasbacar, sim para o mais depressa possível estacionar o carro. Dei voltas sem conta, estonteado a ponto de em certos momentos não saber onde me encontrava. Vaga não havia nenhuma, das poucas vezes que, perto ou longe, apercebia uma, já alguém mais feliz do que eu se apressava a ocupá-la.
Desesperado como me sentia, julguei que fosse alucinação, mas era realidade: defronte de mim, num chão de ladrilhos luxuosos, junto de um muro onde se abria a porta azul de um ascensor, havia cinco ou seis lugares vagos.
Parei o carro, suspirei de alívio, saí e dei de caras com um polícia que parecia ter-se materializado por milagre.
- É proibido estacionar aqui.
- Mas porquê? Não vejo sinal nenhum!
- E estes cordões?
Na minha agitação eu não tinha reparado nos cordões de veludo vermelho que, sustentados por varas de metal cromado, faziam uma espécie de cerca.
- Dentro deste cordões - explicou ele - é reservado para os VIPs.
E depois, severo, para que eu me desse conta do sacrilégio: - Na semana passada esteve cá o Figo, e estacionou exactamente aqui. Até ouvi dizer que é o lugar dele.
Os netos apanharam o avião, que felizmente se atrasara , e eu, livre de encargos e de pressas, comprei um jornal, fui tomar café.
Grande descanso dá a ignorância, afirmei antes. Mas assim não é. Talvez por ser sábado o jornal trazia um grosso suplemento desportivo, dezenas de páginas a detalhar o que, mau grado a sua importância, escapara à minha atenção. Fui lendo, com o sentimento de estranheza que talvez ressintam os animais quando acordam da hibernação, um sentimento de estar no mundo sem me aperceber do que acontecia em redor.
O aumento do aeroporto, aquelas obras que me tinham parecido grandiosas, tornavam-se uma ninharia se comparadas com o que acontecia no resto do país. Nada menos de dez estádios, dois dos maiores em Lisboa, achavam-se em fase de acabamento, e o jornal, trombeteando, falava de construções gigantescas, ciclópicas. Nenhum país europeu se podia orgulhar de semelhantes obras-primas da arquitectura, de estádios com tanto luxo, ou tecnicamente mais avançados.
A respeito do novo estádio de Braga, projectado por um arquitecto de renome, era um desvario de qualificações: aquilo não era estádio, era uma jóia, uma preciosidade, uma maravilha que, ao ver-se, fazia perder o fôlego. Elegância igual à das suas linhas só talvez existisse nos templos da antiga Grécia. E o jornalista tornava-se ligeiramente libidinoso, ao afirmar que, para encontrar proporções de tão sublime perfeição, seria necessário recorrer ao feminino, sugerindo que, para resultado que se lhe assemelhasse, se teriam de fundir num só os corpos de Nancy Crawford, Kate Moss e Naomi Campbell.
De volta à minha aldeia transmontana contei numa roda de amigos o que me tinha acontecido, o que tinha lido, mas eles, em vez do ar de comiseração que eu esperava, riram-se com azedume da minha falta de interesse e de conhecimentos.
Que não morresse de amores pelo desporto, ainda era de aceitar, mas estava eu pelo menos ao corrente que Portugal tinha recebido o privilégio de organizar no Verão o Euro 2004?
Acenei que sim, julgando apaziguá-los, mas de pouco valeu. Uns mal humorados, outros marcando as palavras com um exagerado gesticular, submeteram a um furioso libelo o meu suposto desamor pela Pátria.
Tinha eu ideia de quantos dezenas de milhões, centenas de milhões de euros, o acontecimento faria entrar nos cofres do Estado? Era eu capaz de calcular o que tão gigantescas obras significavam em postos de trabalho, salários, melhoramento das infraestruturas? Os benefícios que daí viriam, e permaneceriam, para enriquecimento do país? Seria a minha candura tão desmesurada que me impedia de ver o enorme impulso que as centenas de milhar de visitantes, talvez milhões, iriam dar à indústria, ao comércio, à hotelaria, aos restaurantes e aos transportes?
De certeza tinha as suas vantagens o ser-se escritor, continuaram os mais embirrentos. Ao escritor era fácil desdenhar do mundo, e ironizar lá do alto da torre de marfim, mas a dureza da vida, o ter de lutar pelo pão, não se compadece com finezas e sensibilidades.
Que queria eu? Zonas verdes em vez de estádios? Criava isso riqueza? Dava trabalho? Era sinal de progresso? Sabia eu que, por exemplo na Inglaterra, um clube como o Manchester United, tinha um valor muito superior ao de grandes companhias mundiais? Não seria bom se um dos clubes portugueses atingisse iguais pináculos?
Lembro-me vagamente que ainda se falou de que, com bons estádios, forçosamente se geravam condições favoráveis ao aparecimento de novos Figos. Que, de tão fora do comum, seria impossível cifrar o valor da publicidade que, através do mundo, o Euro 2004 ia dar a Portugal.
O mais entusiasta dos meus amigos concluiu dizendo que, não somente semelhante empresa merecia aplauso, mas que os investimentos agora feitos, mesmo sendo de imediato onerosos para as débeis finanças do país, certamente iam render, sabia-se lá?... Duzentos? Quinhentos? Mil porcento?
Despedimo-nos com gracejos, minimizando as nossas diferenças, mas, de cansaço ou exaspero, essa noite foi para mim de insónia.
Num momento a reprovar a minha falta de consideração pelas simpatias e os entusiasmos dos meus amigos, no momento seguinte a tratá-los de alarves, por darem tão desproporcionada importância a um desporto que, mau grado as centenas de milhões dos seus adeptos e os colossais rendimentos, não se me afigura, embora geralmente se afirme o contrário, como sendo uma actividade tendente a elevar a natureza humana, ou a criar harmonia entre as nações.
No dia seguinte, em busca de contra-argumentos de mais peso que o meu desinteresse, liguei o computador, procurei “Luís Figo” na internet, e logo Google me apresentou nada menos de setenta e cinco páginas, cada página com dez hits, cada um destes subdividindo-se num sem número de outras páginas, links, sites, albuns fotográficos, vídeos, cartazes, impressões, artigos, biografias... Um emaranhado que demoraria meses a destrinçar, além de que, fora as línguas mais correntes, se teriam de conhecer outras exóticas, como o coreano, o usbeque, o baasa indonesia, o urdu, e sabe Deus quantas mais.
De pouca dúvida era o facto de que, provavelmente todas esses sites - os que li de certeza ecoavam aqueles de que só pude apreciar as ilustrações - eram um rosário de ditirambos e superlativos, descreviam com minúcia as excepcionais qualidade de Luís Figo como desportista, como futebolista, avançado, português, homem, filho, camarada, filantropo, protector da infância...
Contra-argumentos para rebater o entusiasmo dos amigos não encontrei, e animosidade contra o futebol em geral, ou as suas estrelas em particular, também não sinto. E nessa noite, num momento de mais serenidade, metendo a mão na consciência, tive de concordar que a minha indiferença em relação ao desporto-rei estava longe de ser tão fundamental como pretendia.
Pois não tinha eu, na infância, idolatrado Artur de Sousa, o “Pinga” do F.C. do Porto que, ressalvadas as diferenças dos ganhos, era o Figo desse tempo remoto?
Uma recordação foi trazendo outra, e lá me revi uma tarde de Verão de 53 (ou terá sido 54?), no Parc des Princes, em Paris, a assistir a um Racing-Benfica. Às lembranças esfumadas de outros jogos, talvez ouvidos na rádio, seguiu-se uma muito viva de um Porto-Ajax, em Dezembro de 1987. Depois outra, três ou quatro anos passados, de um Portugal-Turquia na Arena de Amsterdam.
Confuso, e quase descrente de que se me tivesse tornado tão selectiva a memória, revi as horas passadas defronte da televisão, a seguir desafios em que Portugal e a Holanda se defrontavam, hesitando sobre qual a equipa a que deveria dar a minha simpatia.
Mas ao perguntar-me se esses arroubos momentâneos, e tão largamente espaçados, fariam de mim um tifoso, vi-me obrigado a responder pela negativa, pois o futebol só muito esporadicamente entra na minha vida, sempre com o aspecto de uma ligeira febre que pouco mais dura que os noventa minutos do jogo.
Contudo, passada a excitação e retomando os sentidos, devo confessar que o futebol me preocupa. Não como desporto, fenómeno social, ou espectáculo que em redor do mundo diverte e emociona centenas de milhões. O futebol preocupa-me, sim, muito egoisticamente, no que ele em Portugal, a minha outra pátria, tem de comum com a situação de Panem et circenses, que já no séc. II da nossa era o poeta Juvenal criticava em Roma.
Não me regozijo no papel de pisse-vinaigre, e parecerá extemporâneo, deslocadamente azedo, mesmo inconveniente, tocar semelhantes assuntos num tempo de tão grande euforia. Mas certo e seguro chegará o momento em que os jogos terminam, a euforia passa e, encerrado o Euro 2004, ao fazer-se as contas, bem aleatória se tornará a certeza de que haja pão para todos.
Que se me perdoe o desabafo, mas estonteia-me o facto que num país tão necessitado, neste momento e de novo o mais pobre da Europa, se tenha gasto um bilião de euros na construção e na renovação de dez estádios.
Isso com a benção de um governo risonho e optimista que, com o primeiro-ministro à frente, foi a um desses estádios e, na presença de 50.000 almas, ignorantes ou preferindo esquecer a miséria de que já sofrem, e aquela que as espera, deu o pontapé de saída ao Euro 2004.
Perdoe-se-me ainda esta ladainha de misérias, infelizmente tão bem expressa na secura dos números. Em 2003 a economia portuguesa diminuiu de 1.1% , ocupando o último lugar que, desde 1986 a 2001 coubera à Grécia. No que respeita a inflacção e o desemprego constatam-se em Portugal os maiores aumentos entre os dos países membros da UE. Enquanto na UE os preços dos bens de consumo aumentaram em média 1.8%, em Portugal a subida foi de 4.4% , e o desemprego passou de 4.1 para 7.2 porcento.
Felizmente, nem tudo são más notícias, pelo menos para alguns: os executivos portugueses recebem os honorários mais elevados da UE. O salário dos directores das empresas públicas é três vezes maior que o dos seus colegas espanhóis ou franceses, e os jornalistas mais importantes da televisão pública auferem ordenados quatro vezes maiores que o mais reputado anchor man da RAI italiana.
Por sua vez o salário mínimo é de apenas 365 euros mensais, enquanto o salário médio dos trabalhadores industriais é de 828 euros, o que equivale a 53% do salário industrial médio que recebe um espanhol, e metade do que ganha um irlandês, um sueco ou um italiano. Os docentes nas escolas e universidades, funcionários públicos, recebem em média o dobro dos seus colegas da EU.
Seria fácil deitar as culpas ao actual governo, conservador e direitista, por dissipar os dinheiros públicos. Acontece, porém, que o esbanjamento já vem do governo anterior, socialista e dito de esquerda, o qual, eleito com a promessa de que terminaria com o favoritismo, e apoiado no slogan optimista “no jobs for the boys”, logo elevou o número de burocratas para mais de 700.000, extraordinária sobrecarga para uma população de 10 milhões.
Ao governo socialista se deve também aquilo a que os analistas chamam the Latin America-style gap da economia portuguesa, com as enormes diferenças que se constantam entre ricos e pobres. E essas não dizem apenas respeito às abismais diferenças dos rendimentos, mas reflectem-se nas comparações com os restantes países da EU, no que concerne o número de horas de trabalho e o acesso aos serviços de saúde pública, à educação e à cultura.
Enquanto que a média de trabalho anual nos outros países da UE é de 1.620 horas, a média portuguesa eleva-se a 1.730. Nos hospitais públicos a lista de espera para operações de cirurgia é de seis anos, e por ser exorbitante o custo dos cuidados dentários, apenas 35% da população se pode permitir o luxo de recorrer ao dentista.
No seu relatório Employment in Europe, a Comissão Europeia aponta que 20% da população portuguesa tem problemas de saúde, enquanto que a média europeia é de 10%. É também em Portugal que se constatam os níveis europeus mais elevados de reumatismo, tensão arterial e diabetes.
Tudo isso já seria mau, mas a lista alonga-se a outros campos de desgraça. Portugal é nr. 1 europeu no número de mortos em acidentes rodoviários. A proporção de acidentes no trabalho alcança 7.214 por cada 100.000 habitantes, triste resultado quando comparado com a média europeia de 4.450. Portugal acusa ainda os níveis europeus mais elevados no consumo de soft drugs, nos casos de SIDA, e de brutalidade policial, este último mantendo-o na lista negra da Amnesty International.
Nas estatísticas oficiais a percentagem de analfabetos aparece como alcançando uns meros 11.8% , mas no relatório antes mencionado o número de portugueses que se podem considerar como funcionalmente iletrados sobe a um assustador 48%, mais do que o dobro do nível verificado na Grã-Bretanha.
Confrontado com estas estatísticas, um comentador escrevia recentemente: “Portugal já tocou no fundo, mas era um fundo falso. Por isso continuamos a cair, desconhecendo o que nos vai acontecer quando chegarmos ao verdadeiro fundo.”
O acesso à UE de dez novos países membros, todos eles com níveis quase-zero de analfabetismo, amplo acesso à cultura e excelente capacidade técnica, resultará para um país economicamente, culturalmente e técnicamente fraco, como Portugal, num inevitável retrocesso e num, igualmente inevitável, desinteresse dos investidores.
Tal como já tantas vezes aconteceu na sua longa história, o país encontra-se de novo à beira de um precipício. Em 1986 salvou-o a adesão à CEE, mas logo, como um doidivanas, em vez de investir sabiamente os desproporcionados subsídios que recebeu, desbaratou-os ele em luxos de novo-rico. Agora talvez tenha de o salvar a Espanha, de que economicamente já depende.
Após um tão longo rosário de misérias e maus presságios, é justo que o leitor se pergunte o que é que isto tem a ver com Figo em particular, e o futebol em geral.
Em minha opinião tem muito, pois não somente o futebolismo é desde há décadas a religião oficiosa dos portugueses, como fez com que no país se erguessem as gigantescas basílicas onde figuras como Luís Figo recebem uma adoração que, em fervor, nada fica a dever à que nos altares cabe aos santos. E será redundante lembrar aqui a frase de Lenine sobre a religião como ópio do povo, mas não é menos certo que, pelo menos o espaço de um Verão, a euforia do campeonato fará esquecer as nuvens negras que se acumulam a prenunciar um tempestuoso futuro.
Os portugueses - extraordinária gente, 10 milhões de almas que possuem mais de 11 milhões de telemóveis, e gastam em telecomunicações três vezes mais no que na educação - continuam a exprimir no fado a sua inata e intensa melancolia, e ainda vão de romagem a Fátima. Verdadeiro e apaixonado fervor, porém, só o mostram no estádio, revendo-se extasiados nas piruetas dos seus futebolistas.
Isto foi o desabafo, mas a consciência e a verdade mandam que se lhe siga a confissão. Estarei em Portugal logo desde o começo do Euro 2004, e não vou perder a abertura, nem aqueles jogos que, um eventual Portugal-Holanda por exemplo, provarão a dificuldade de manter o espírito escorreito em alguém que, como eu, vive em simultâneo duas vidas, possui duas sensibilidades diferentes, se exprime em duas línguas discordantes, se sente dilacerado por interesses contraditórios e visões opostas da realidade.
Não irei aos estádios, porque sempre me assustaram os grandes ajuntamentos, mas sozinho ou com os amigos assistirei na televisão, o entusiasmo há-de contagiar-me, também vou aplaudir. E enquanto o jogo durar vou esquecer.