Entre os trinta e os oitenta anos perdi a conta às viagens de avião, mas desde aí só voo se é caso de urgência, pois o que foi alegria, excitação, tornou-se aborrecimento e cansaço. Hoje entro nos aeroportos com a fúria impotente de quem se vê obrigado a ser do rebanho. As intermináveis esperas, o ar de artifício daquela gente, uns já disfarçados de turistas, outros a fingir de homens de negócios, os aflitos, os de ar enfastiado... Espectáculo deprimente.
Além disso, talvez
porque no meu primeiro voo transatlântico testemunhei um terrível acidente, há
ocasõoes em que entrar no avião raro escapo a um pensamento macabro: olho em
volta, examino os rostos, as expressões, pergunto-me se me importaria morrer na
companhia de semelhantes figuras.
A resposta é um terminante sim, importaria, e tem por consequência a
reconfortante certeza de que Deus terá ouvido, para me chamar escolherá outra hora
e companheiros menos trombudos.
Infelizmente, seja no ar ou no chão, ao ir escadas abaixo, atravessando a rua, nas ocasiões sem número em que, de súbito, o Todo Poderoso corta o que os poetas chamam “o fio da vida”, raras vezes nos é dado escolher companheiro.
Uma tarde, quase um ano depois do último encontro, dei com o Abílio Mota na farmácia, e não querendo incomodar ali ninguém com os nossos achaques, fomos para o café resmungar sobre a fragilidade da existência e a nossa muita idade. Então, ao ouvir-me dizer que ninguém escolhe a hora da morte, e geralmente morremos sós, o Abílio, a quem sempre tinha tido por um bom-serás, surpreendeu-me ao dar um murro na mesa, ao mesmo tempo que a boca se lhe retorcia num aceso de raiva e quase o não deixava falar.
Já recomposto bebeu o café, dando a impressão de que esquecera a minha presença e falava sozinho:
- Quando tiver de ir vou! Mas uma certeza tenho, ela não fica!