Talvez seja uma
questão de genética, verdade é que mal-grado a idade, a minha memória funciona
sem que dela tenha razão para me preocupar, pois se mostra pronta a fornecer os
dados, os nomes, as recordações que lhe peço.
Tenho, contudo, a suspeita de que esta memória é diferente daquela com que
nasci. Não que negue serviço ou se tenha tornado lenta, mas como que se lhe
acrescentou uma dimensão crítica que antes não possuía.
Assim, quando por vezes, saudosista, quero relembrar um momento, uma conversa,
é como se no íntimo uma voz se interpusesse, perguntando ríspida que
necessidade tenho desssas recordações, se me tornei incapaz de separar o
importante do banal, se o recordar passou a ser um divertimento.
No caso do Amadeu
talvez sim. Sempre quis parecer velho, e desde que se reformou exagera as
características do ancião: caminha curvado, fala com vagar, cultiva uma surdez
imaginária, oferece bons conselhos e gosta que se faça apelo à sua “vasta
experiência.”
Dias atrás, sem que lho perguntasse, informou-me que já tem quase duzentas
páginas das suas memórias, e quer terminá-las antes do Verão. Não disse mais,
mas o comentário que aguardava não me ocorreu.
Curiosidade pelo seu opus também não tenho, e por isso ficamos num
silêncio desagradável que ele finalmente quebrou, dizendo que se sente
insatisfeito com o que fez. Em sua opinião um livro de memórias não deve ser
apenas a listagem cronológica de recordações e acontecimentos, mas possuir
sobretudo uma teia e um fio condutor. O que é que acho?
Sem convicção, só para evitar que o diálogo caísse no que lhe agrada e a mim
aborrece, “o tom literário,” respondi-lhe que sim, também acho. Mais tarde, recordando a
conversa, digo-me que na vida, e nas memórias que sobre ela se escrevem, os
fios condutores são ilusão. O caos, esse sim, é real e palpável.