domingo, janeiro 29

O caos da memória

 

Talvez seja uma questão de genética, verdade é que mal-grado a idade, a minha memória funciona sem que dela tenha razão para me preocupar, pois se mostra pronta a fornecer os dados, os nomes, as recordações que lhe peço.
Tenho, contudo, a suspeita de que esta memória é diferente daquela com que nasci. Não que negue serviço ou se tenha tornado lenta, mas como que se lhe acrescentou uma dimensão crítica que antes não possuía.
Assim, quando por vezes, saudosista, quero relembrar um momento, uma conversa, é como se no íntimo uma voz se interpusesse, perguntando ríspida que necessidade tenho desssas recordações, se me tornei incapaz de separar o importante do banal, se o recordar passou a ser um divertimento.

No caso do Amadeu talvez sim. Sempre quis parecer velho, e desde que se reformou exagera as características do ancião: caminha curvado, fala com vagar, cultiva uma surdez imaginária, oferece bons conselhos e gosta que se faça apelo à sua “vasta experiência.”
Dias atrás, sem que lho perguntasse, informou-me que já tem quase duzentas páginas das suas memórias, e quer terminá-las antes do Verão. Não disse mais, mas o comentário que aguardava não me ocorreu.
Curiosidade pelo seu opus também não tenho, e por isso ficamos num silêncio desagradável que ele finalmente quebrou, dizendo que se sente insatisfeito com o que fez. Em sua opinião um livro de memórias não deve ser apenas a listagem cronológica de recordações e acontecimentos, mas possuir sobretudo uma teia e um fio condutor. O que é que acho?
Sem convicção, só para evitar que o diálogo caísse no que lhe agrada e a mim aborrece, “o tom literário,” respondi-lhe que sim,  também acho. Mais tarde, recordando a conversa, digo-me que na vida, e nas memórias que sobre ela se escrevem, os fios condutores são ilusão. O caos, esse sim, é real e palpável.