É raro, mas aconetece. O texto que deveria estar hoje no Correio da Manhã foi inexplicavelmente substituído por um de há três semanas. O que segue é de há três anos.
Medo de represálias não tenho e também não é desinteresse, pois o mundo continua a fascinar-me, gostaria mesmo de ter aquelas sete vidas que se atribuem aos gatos. O que acontece é que, embora sejam de sobra as boas e más razões, estou a perder a vontade de criticar. Gente séria mete-se em polémicas tolas, os fanáticos do género pedem mesmo uma desanda, os magros criticam os gordos, os turistas continuam a embasbacar, os políticos a prometer… Mas críticas para quê? Alivia? Não alivia. Resolve? Não resolve. Satisfação também não dá e ainda por cima se criam inimigos.
Por isso, em público e na intimidade do lar, critico agora tão espaçadamente que começa a ser notado, corre o boato de que estou a ficar simpático. Deu nas vistas a paciência com que, tempos atrás, aceitei um convite para assistir à conferência de um místico sueco que, pelo menos foi isso o que o próprio me disse, passou longo tempo no Japão a estudar vários ramos da sabedoria oriental.
Acabada a palestra, de que nada compreendi – o inglês falado com sotaque sueco também não ajuda – serviram um chá e foi então que, certo de que sendo o mais idoso dos presentes eu era presa fácil, o místico veio direito a mim, sorridente, afável, agarrou-me ambas as mãos, a querer dar-me em particular o benefício do seu saber:
- Porque deve ser essa a finalidade! Compreende? Descobrir quem somos! Manter permanente o grande objectivo: a busca do eu! Do verdadeiro eu!
Finjo-me atento, de vez em quando até sorrio, mas a maioria das suas palavras tem o conhecido destino de entrar por um ouvido e sair logo pelo outro.
Não sei se o acho ingénuo ou destravado, certo é que não me larga, e numa inesperada mudança fala agora da sua tese sobre o Kildin Saami, uma das línguas do extremo norte da Europa, e do seu grau de mestre de Ch'an.
- Atenção! Para quem sabe pouco destas coisas Ch'an é o mesmo que Zen, mas há diferença! Ch'an é informal, pragmático, a relação entre mestre e discípulo não tem a severidade japonesa do Zen.
Interessa-me o assunto? Não interessa. Quero encontrar o meu verdadeiro eu? Não quero, acho até mais avisado não começar a busca.
Ele prossegue, referindo as subtis diferenças entre o Kildin Sami e um outro ramo dessa língua, o Skolt Sami, mas logo retorna à profundidade espiritual que só se alcança com o Ch'an.
O seu vulto vai perdendo os contornos, a voz esmorece, entro involuntariamente num estado que lhe parecerá de meditação transcendente, mas que de facto é uma invencível sonolência.