sexta-feira, março 5

Enganos e desenganos

 

Espera-te o desnorte quando julgares distinguir gente tua, ribeiras, areais, a mancha de povoados, o clarão de cidades no horizonte da noite.

Esquece mandamentos e regras, o que te aconselharam, o que julgas saber ou sentir, atenta apenas na bênção que por vezes inesperadamente chega: a de aperceberes os gritos que, por irem longe e para além dele, desafiam o som.
A vida não se arruma em prateleiras, dispensa rótulos, lojistas ou amanuenses, mas por falta de olhos, de coração, arrogância de sobra e escassa humildade, tomam alguns a superfície por fundura, imaginam cores onde só há cinza, abraçados na dança ritual da auto-satisfação fazem-se rapapés de sécias,  adivinham cópulas na horizontalidade do oceano.

E talvez assim seja, que os há em todos os tempos, os que o Espírito visita. Mas tu, eu, uns quantos, só vemos ondas e tormenta, rebentação, o fim d' água que se perde no horizonte, o vento a soprar o areal.
Vamo-nos, esses e nós, enganando, desenganando, aos saltos e trambolhões, cai aqui pára além, ora crentes, depois aflitos, desesperados, medrosos, evitando olhar para o que fica, querendo amanhãs que nunca chegam, polindo a memória até que dela só reste o que brilha. Desfiando histórias que seriam de fadas se tivessem princípio, meio, e terminassem felizes, mas são mais de sombra e desespero, sempre esquerda a roda da sorte.