Nasci, criei-me, vivi vinte anos num regime de ditadura. Nunca nesse regime fui proibido de sair à rua, sentar-me num banco de jardim, andar por onde quisesse quando quisesse, sair ou ficar em casa como me apetecesse.
Vivo no que chamam um regime democrático, que na prática funciona com mais eficiência do que o das ditaduras. As proibições tornam nulos os direitos da Constituição, intervêm na liberdade dos meus movimentos, obrigam-me a um recolher, condicionam o que posso fazer e em que momento, impõem-me uma máscara, um distanciamento do semelhante, uma vacina. Se infrinjo a lei não me prendem nem vou para a cadeia – que isso dá despesa – mas aplicam-me a multa, que é castigo e prejuízo. A ditadura negava-me o passaporte, a democracia obriga-me a ter vários, incluindo o que prova a minha obediência à aplicação da vacina. A ditadura tinha a censura, a democracia impõe-me a maneira correcta, inclusiva, igualitária, uniforme, de em tudo agir e sobre tudo pensar.
Vivi vinte anos em ditadura, setenta em democracia, vou falecer com o sentimento triste de que os meus bisnetos ouvirão falar de liberdade, mas alguém terá de lhes explicar o que isso era.