Não é preciso ser supersticioso
para que às vezes nos assalte o sentimento de que se qualquer coisa não corre
como esperávamos isso se deve à inveja, a praga que nos rogaram ou às forças do
mau-olhado.
Alguns riem e encolhem os ombros,
outros argumentam que alguém com dois dedos de cabeça não se deixa levar em
contos da carocha, se acredita nos poderes do oculto desce ao nível dos clientes
do professor Khalundé.
Assim será, mas esses não
conhecem o Alípio Freitas, caso contrário talvez não se atrevessem a ser
categóricos e prontos a rir do que desconhecem ou são incapazes de compreender.
Havia um ano que no nono andar
do prédio do Alípio – o apartamento dele é no oitavo – morava um estrangeiro que
pelo modo devia ser homem de posses, mas no resto era uma incógnita, nem nome
parecia ter, pois junto da campainha estavam umas iniciais e na comissão de
moradores só sabiam que a propriedade era de uma firma de Gibraltar.
Encontravam-se no ascensor, mas
ao bom-dia boa-tarde o sujeito respondia com um aceno, uma imitação de sorriso,
e a cortesia ficava por aí, dando a entender que dispensava intimidades.
Nessas circunstâncias o espanto
não podia ser maior quando uma noite o Alípio ouviu que alguém batia à porta em
vez de tocar a campainha, e ao abrir teve a surpresa de dar com o estrangeiro
que, contra o seu natural, parecia desnorteado.
Acenou-lhe que entrasse e o
homem, falando inglês, pediu desculpa do incómodo, dizendo que
agradecia que o acolhesse, porque se sentia mal e receava estar sozinho se
tivesse um acesso.
- É epilepsia? - perguntou o Alípio.
- Antes fosse – respondeu o estranho,
enquanto cambaleava a caminho do sofá, onde se deixou cair como se lhe
faltassem as pernas, o rosto duma palidez sobrenatural, dando ideia que todo o
sangue o abandonava, ao mesmo tempo que os olhos pareciam alargar-se numa
expressão de terror.
O Alípio ia ligar para o 112,
mas o homem, aos roncos e a espumar da boca, entrou numa grande agitação a acenar que o não fizesse.
O que depois viu só o conta aos
mais íntimos, não vão julgá-lo doido ou pior. O homem tinha-se estendido no
sofá, as mãos cruzadas no peito, o corpo num tremor, ao mesmo tempo que parecia
encolher ou ir-se afastando, até que de súbito desapareceu.
Para mistério chegava, mas o Alípio
ouviu depois dizer que a firma de Gibraltar tinha o apartamento à venda, porque
o funcionário a que o destinavam morrera num desastre e nunca o tinha habitado.
O Alípio jura que foi assim, e quem
sou eu para duvidar?