- Não compreendo, palavra, estas
tardes de pasmaceira! A província no seu melhor!
Ele tinha dito aquilo sem me
encarar, dando a impressão que continuaria o raciocínio, mas calou-se, bebeu um
gole de café, o silêncio demorava, só depois de pousar a xícara fez um discreto
movimento do braço para que não se notasse que apontava as pessoas na
esplanada.
- Esta boa gente! Olha pra
eles! Parecem um filme do Neo-Realismo. Lembras-te? Aqueles italianos de Rossellini,
de Fellini, de Vittorio De Sica. Se imaginares isto a preto e branco pouco
mudou. Ou nada.
- Exageras.
- Claro que exagero um
bocadinho, mas o que eu vejo tu não vês porque não queres ver. Escapa-te o conjunto,
o essencial.
Esforcei-me por reprimir o
bocejo, que poderia parecer de aborrecimento mas era mesmo de cansaço, ele
sorriu como se me desculpasse:
- Repara bem neste nosso povo.
Esquece as roupas, as cores, os penteados, os telemóveis. Concentra-te nas
caras e nos gestos, o modo como conversam. Ou como apertam a mão daquele tipo que
chegou agora. Repara nas gargalhadas, nos risinhos das senhoras, os olhares de esguelha.
Estão vivos, mas são moribundos.
- E tu a pensar num filme.
- Claro. Porque os vejo com
os olhos que tenho cá dentro, que são assim a modos da ressonância magnética:
vêem tudo de uma maneira especial.
Chegado aos sessenta, o Joaquim
Valdemata é o protótipo da geração guedelhuda que era jovem no 25 de Abril, mas
pertence aos privilegiados que não tiveram de se desunhar pelo ganha-pão e se
podem dar ao luxo de viver embalados por ilusões e um cinismo chique.
Mas sorte tem ele. Primeiro
viveu, gozou, viajou, encostado aos pais, depois à herança destes, de seguida ao
que a madrinha dentista lhe deixou em testamento. Em razão dessa vida de
privilégio, e de se sentir bastante acima do geral dos compatriotas, o Quim
Valdemata tem da sociedade portuguesa uma
noção muito sua, que costuma anunciar erguendo os braços num gesto dramático, e
depois exclamar: - É tudo cinema! – significando mais ou menos que ao ver-nos dos
píncaros de uma vida de luxo, apenas somos uma massa de figurantes.
Acostumados à sua extravagância,
em geral ouvimo-lo com a atitude de que o que ele diz entra por um ouvido, sai pelo outro.
Ultimamente, porém, talvez a justificar a antiga verdade de que “água mole em pedra dura, tanto
dá até que fura”, eu próprio me pergunto se nós, cidadãos, somos os actores principais
que devíamos ser na vida do País, ou apenas
figurantes, títeres a que outros puxam os cordelinhos.