sábado, julho 6

É tudo cinema


- Não compreendo, palavra, estas tardes de pasmaceira! A província no seu melhor!
Ele tinha dito aquilo sem me encarar, dando a impressão que continuaria o raciocínio, mas calou-se, bebeu um gole de café, o silêncio demorava, só depois de pousar a xícara fez um discreto movimento do braço para que não se notasse que apontava as pessoas na esplanada.
- Esta boa gente! Olha pra eles! Parecem um filme do Neo-Realismo. Lembras-te? Aqueles italianos de Rossellini, de Fellini, de Vittorio De Sica. Se imaginares isto a preto e branco pouco mudou. Ou nada.
- Exageras.
- Claro que exagero um bocadinho, mas o que eu vejo tu não vês porque não queres ver. Escapa-te o conjunto, o essencial.
Esforcei-me por reprimir o bocejo, que poderia parecer de aborrecimento mas era mesmo de cansaço, ele sorriu como se me desculpasse:
- Repara bem neste nosso povo. Esquece as roupas, as cores, os penteados, os telemóveis. Concentra-te nas caras e nos gestos, o modo como conversam. Ou como apertam a mão daquele tipo que chegou agora. Repara nas gargalhadas, nos risinhos das senhoras, os olhares de esguelha. Estão vivos, mas são moribundos.
- E tu a pensar num filme.
- Claro. Porque os vejo com os olhos que tenho cá dentro, que são assim a modos da ressonância magnética: vêem tudo de uma maneira especial.
Chegado aos sessenta, o Joaquim Valdemata é o protótipo da geração guedelhuda que era jovem no 25 de Abril, mas pertence aos privilegiados que não tiveram de se desunhar pelo ganha-pão e se podem dar ao luxo de viver embalados por ilusões e um cinismo chique.
Mas sorte tem ele. Primeiro viveu, gozou, viajou, encostado aos pais, depois à herança destes, de seguida ao que a madrinha dentista lhe deixou em testamento. Em razão dessa vida de privilégio, e de se sentir bastante acima do geral dos compatriotas, o Quim Valdemata tem  da sociedade portuguesa uma noção muito sua, que costuma anunciar erguendo os braços num gesto dramático, e depois exclamar: - É tudo cinema! – significando mais ou menos que ao ver-nos dos píncaros de uma vida de luxo, apenas somos uma massa de figurantes.
Acostumados à sua extravagância, em geral ouvimo-lo com a atitude de que o que ele diz  entra por um ouvido, sai pelo outro. Ultimamente, porém, talvez a justificar a antiga  verdade de que “água mole em pedra dura, tanto dá até que fura”, eu próprio me pergunto  se nós, cidadãos, somos os actores principais que devíamos ser na vida do País, ou apenas  figurantes, títeres a que outros puxam os cordelinhos.