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"...e quando um dia, numa hora por ti não
esperada, os filhos dos nossos filhos por mim perguntarem, levanta os braços,
abraça o céu e diz -lhes que estou por aí. No azul das fragas, no cinzento das
pedras, no verde das ervas onde o milagre da criação perpetua a vida, e o
tempo do nunca corre na eternidade de todos os tempos. Que as tuas
lágrimas não ensombrem seus olhos de meninos. Que o tremor da tua voz não lhes
cale os hinos ao futuro de todas as esperanças, ao contentamento de todas as
conquistas. Ergue a cabeça e junta à deles a tua e a minha voz.
Com eles celebra a vida. O cântico das marés, o brotar
do dia nas cumeeiras das serras, o abrir de asas dos milhafres em voos rasantes
aos campos de milho, os gritinhos vermelhos das papoilas nas searas ébrias de
sol.
Conta-lhes como eu, filha dos montes, altos montes,
atrás dos montes concebida e gerada, deixei meus pés aí lançarem raízes e
nas mãos tomei a lonjura de outras terras, de outras gentes.
Não lhes fales agora da minha dor. Que sejam eles, por
enquanto, estranhos às minhas trevas, às minhas renúncias, à minha nesga de
firmamento que o meu sofrimento me negou.
Não contes, para já, aos filhos dos nossos filhos
como, acossada pela peleia entre a morte e a vida, pedra a pedra, angústia a
angústia, dentro de mim um eremitério construí. Refrigério de esmigalhadas
forças em esforçados sorrisos, alento, alor para seus pais, nossos
filhos..."
….
Este texto de Maria da Piedade Barroso Martins, autora
inédita, chegou-me sem título. Atrevi-me a baptizá-lo " O cântico das marés",
partilho-o com a emoção que provoca um texto desta qualidade.