Morri pela
primeira vez aos quatro anos, na Exposição Colonial, no Porto, onde tinham
cavado um lago rodeado de palmeiras. O nosso barquito chocou com outro, e meu Pai,
na pressa de me proteger, atirou comigo à água.
Morri por
volta dos dez, com os banhos fortificantes que me davam de madrugada no rio
Douro. E na adolescência morri em Lanhelas, junto da Capela da Senhora da Saúde:
a bicicleta a derrapar, eu aos trambolhões, chorando a minha morte. Voltei a
morrer em Viana, a correnteza do Lima a arrastar-me para a barra.
Nesse ano morri
no comboio para Braga. O revisor, vendo-me pendurado na janela, deu um berro e
puxou-me para dentro. "É perigoso debruçar-se! Ne pas se pencher au
dehors. È pericoloso sporgersi".
Ó palerma! Não viste o letreiro? Tinha visto, mas palavras assim é que
não.
Sentou-se a
morte ao meu lado no céu do Amazonas. O avião que me levava do Brasil para os Estados
Unidos caiu num poço de ar tão fundo que na cabine voavam coisas e as
hospedeiras pareciam ter-se libertado da força da gravidade.
Nas Astúrias
morri na C-630, uma estrada pitoresca que vai de Fonsagrada a Puerto de Vega. Travei
ao ver a mancha de óleo, e foi um rodopio que ora me levava para a borda
do abismo à direita, ora punha à esquerda um outro ainda mais fundo.
Em Paris
morri no metro Saint Lazare; ao atravessar a Place des Vosges; engasgado
com uma asa de frango no restaurante Cambronne, familiarmente conhecido por Chez la Merde; e quando, mal saído da
cama de madame Marie Louise, me cruzei nas escadas com o monsieur dela e, cortês, ele me deu as
boas-noites.
Morri com
outros quatro no ascensor de um hotel em Valladolid. Por mais que fizéssemos, a
gaiola não parava nos andares nem abria as portas, e é curioso como a
claustrofobia corta a respiração.
Em São Paulo
aceitei um convite para, do céu, admirar "a imensidão da nossa
metrópole". Bom rapaz, bom piloto, mas tarado, fez-me sentar num biplano,
apertou ele próprio os cintos todos, disse OK, e vá de voar em curvas mansas.
Quando lhe pareceu que bastava, deixou o aviãozito "cair" em
saca-rolhas, a fazer loopings, a dar cambalhotas, eu certo de que os
cintos não iam aguentar. Então devo ter morrido umas dez vezes, mas escondi o
medo, tão-pouco lhe dei o gosto de ter borrado as calças, o que ele esperava e,
a gargalhar, disse ter acontecido a outros.
Desde então
não voltei a morrer, embora às vezes me pergunte se estou vivo e se o
pandemónio à minha volta é o mundo.
(*) Palavra, nesse tempo as janelas das
carruagens podiam abrir-se.
….
Publicado na
DOMINGO CM