segunda-feira, janeiro 16

Já morri





Morri pela primeira vez aos quatro anos, na Exposição Colonial, no Porto, onde tinham cavado um lago rodeado de palmeiras. O nosso barquito chocou com outro, e meu Pai, na pressa de me proteger, atirou comigo à água.
Morri por volta dos dez, com os banhos fortificantes que me davam de madrugada no rio Douro. E na adolescência morri em Lanhelas, junto da Capela da Senhora da Saúde: a bicicleta a derrapar, eu aos trambolhões,  chorando a minha morte. Voltei a morrer em Viana, a correnteza do Lima a arrastar-me para a barra.
Nesse ano morri no comboio para Braga. O revisor, vendo-me pendurado na janela, deu um berro e puxou-me para dentro. "É perigoso debruçar-se! Ne pas se pencher au dehors. È pericoloso sporgersi". Ó palerma! Não viste o letreiro? Tinha visto, mas palavras assim é que não.
Sentou-se a morte ao meu lado no céu do Amazonas. O avião que me levava do Brasil para os Estados Unidos caiu num poço de ar tão fundo que na cabine voavam coisas e as hospedeiras pareciam ter-se libertado da força da gravidade.
Nas Astúrias morri na C-630, uma estrada pitoresca que vai de Fonsagrada a Puerto de Vega. Travei ao ver a mancha de óleo, e foi um rodopio que ora me levava para a borda do abismo à direita, ora punha à esquerda um outro ainda mais fundo.
Em Paris morri no metro Saint Lazare; ao atravessar a Place des Vosges; engasgado com uma asa de frango no restaurante Cambronne,  familiarmente conhecido por Chez la Merde; e quando, mal saído da cama de madame Marie Louise, me cruzei nas escadas com o monsieur dela e, cortês, ele me deu as boas-noites.
Morri com outros quatro no ascensor de um hotel em Valladolid. Por mais que fizéssemos, a gaiola não parava nos andares nem abria as portas, e é curioso como a claustrofobia corta a respiração.
Em São Paulo aceitei um convite para, do céu, admirar "a imensidão da nossa metrópole". Bom rapaz, bom piloto, mas tarado, fez-me sentar num biplano, apertou ele próprio os cintos todos, disse OK, e vá de voar em curvas mansas. Quando lhe pareceu que bastava, deixou o aviãozito "cair" em saca-rolhas, a fazer loopings, a dar cambalhotas, eu certo de que os cintos não iam aguentar. Então devo ter morrido umas dez vezes, mas escondi o medo, tão-pouco lhe dei o gosto de ter borrado as calças, o que ele esperava e, a gargalhar, disse ter acontecido a outros.
Desde então não voltei a morrer, embora às vezes me pergunte se estou vivo e se o pandemónio à minha volta é o mundo.

(*)  Palavra, nesse tempo as janelas das carruagens podiam abrir-se.


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Publicado na DOMINGO CM