domingo, julho 21

A cabeça mais que cheia

 

Deve ter passado os setenta, mas está longe da velhice, é daquelas pessoas que nas pequenas comunidades parecem existir para representar o papel de alguém que se reconhece na rua ou no café, mas de quem pouco se sabe.

É o velhote do cãozito amarelo, parece que mora para os lados do castelo, um ou outro lembra-se de que tinha duas filhas, mas isso há vidas. Do que todos sabem é que não tem íntimos nem dá confiança. Bom-dia, boa-tarde, um vago aceno, um meneio da cabeça, e de súbito parece esfumar-se, esquecem-no antes de virar a esquina.

Pelas aparências deve ter boa reforma, mas ideia nenhuma de quanto será, donde lhe vem, que profissão foi a sua, por que franças andou.

Felizmente, mordido por um alsácia teve o cãozito de ser levado à veterinária. E essa, boa na profissão e excepcional nas relações humanas, “descascou” o senhor, assim se sabe agora que há muito é viúvo, trabalhou anos no Iraque de Sadam Hussein, no Dubai, nos “petróleos” da Venezuela.

Mas o passado passou, hoje só se interessa pelo seu “fiel amigo”, e o jeito que sempre teve para a pintura. Não a clássica, morosa, com regras e estilos, mas à sua maneira, absolutamente livre e original.

 Na mesa coloca em desalinho umas quantas latas de tintas de tons diferentes. Montado o cavalete, agarra três garfos, mergulha-os numa e noutra lata, esfrega-os depois na tela, fazendo os movimentos do que sente como inspiração.

Certas ocasiões “uma voz” diz-lhe que esfregue o dedo em certas manchas, do que resulta um inesperado sentimento de bem-estar.

- Na televisão e nos jornais – confessou ele à veterinária – há muitos a queixar-se de serem bi-popular assim, bi-popular assado, mas são raros os verdadeiros bi-populares, os que como eu têm a cabeça mais que cheia.