Quem nasceu com as liberdades dos Beatles e do Rock 'n' Roll, só com excepcional esforço da fantasia conseguirá compreender um pouco do pasmo, da exaltação, febre e fome sexual de um rapaz que, mal feitos vinte anos, a década de 50 no começo, descobre Paris e, por bagagem erótica, tem apenas o onanismo, o dedilhar nas cuecas de uma Luísa na escadaria da igreja da Senhora da Agonia, em Viana; apalpões nas mamas e outras partes de várias Emílias e Teresinhas; cópulas peçonhentas em casas de tia da Rua Escura, no Porto; raras visitas ao bordel de Madame Blanche na Rua da Glória, em Lisboa, raras porque duma assentada me depenavam do pré de miliciano e do escasso mealheiro.
A imaginação e overdoses de leitura
só serviam para aumentar o desejo, acelerar as pulsões, e foi nesse estado que
quase de súbito, dois ou três dias depois da chegada, me vi pela mão de
Joaquim Novais Teixeira (1899-1972), amigo de raras qualidades e precioso
mentor, a entrar num diminuto apartamento na vizinhança da Rue du Bac,
cheio de gente, fumo, barulheira, comunicando aos berros com o locatário que,
achava Novais, seria para mim um útil contacto.
Ruy Guerra (1931), moçambicano, filho de pai rico, estudava no Institut des Hautes Études Cinématographiques e distinguia-se então pelo apartamento, a posse de uma Lambretta, a jovial camaradagem, as raparigas que atraía, o entusiasmo com que falava da arte do cinema.
Particular era a amizade que o ligava a Gabo, um colombiano de maus fígados, sobremaneira insolente para com quem se atrevesse a contradizê-lo ou contrariar a sua certeza de que no marxismo estava a salvação. Com o Ruy simpatizei, mas pus boa distância entre mim e o colombiano, também íntimo de Novais, e de quem viria a apreciar Cem anos de Solidão e, sobretudo, O Amor nos Tempos de Cólera.
Retirou essa antipatia a
oportunidade de mais tarde me poder dizer compincha de um Nobel, mas poupei-me
o trato com um personagem que, de tão cheio de si próprio e da ortodoxia das
suas convicções, desafiava a paciência.
De melhor têmpera e mais siso, eram
o François, o Jean-Luc, o sorridente e em permanente boa disposição Claude,
rapazes de quem recordo o entusiasmo que partilhávamos pelo cinema italiano e a
admiração que tínhamos por Rossellini, Vittorio De Sica, Anna Magnani, Lucia
Bosè, – paixão minha – mas nada que me permita fazer valer intimidades com
Truffaut, Godard ou Chabrol, embora mais tarde, esporadicamente, os viesse a
encontrar na redacção dos Cahiers du Cinéma.
Mencionei que o apartamento era diminuto, adjectivo que deixa margem para interpretação, e mais de acordo com a realidade seria classificá-lo minúsculo: uma salinha onde cabia um sofá e pouco mais, um quarto com uma cama estreita, um banheiro que ao mesmo tempo fazia de cozinha.
Minúsculo sim, mas paraíso de porta
aberta onde havia sempre gente, às vezes tanta que o patamar servia de anexo. E
quando digo paraíso e gente, digo sobretudo mulheres, que em número excediam os
existencialistas que por ali rondavam, sombrios, pose de enfastiados, Gauloise
nos dedos, citando passagens de L'Être et le Néant, querendo ouvir
opiniões sobre Heidegger, a importância dos planos quinquenais, a ascensão das
massas campesinas na América do Sul.
Visita quase diária, arregalavam-se-me os olhos para o espectáculo, e nesses mesmos olhos, na pele, no cérebro, nos dedos, nas mãos, sabe Deus em que partes mais, descobria eu, perplexo, qualidades de esponja, uma propensão para, com urgência de obcecado, absorver o que se me deparava, me propunham ou ofereciam.
Das primeiras e inesperadas ofertas
há muito esqueci os nomes, as feições, e provavelmente confundo os locais,
julgando que aconteceu por baixo do Pont des Arts o que fizemos no Pont
Neuf, ou mais certo é ter sido no Quai Voltaire.
Guardo sim, inapagável, a lembrança de Felipa, madrilena, então futura arquitecta, dez réis de gente que de aparência pouco atraía, mas, garantiu o que ma passou, era senhora de dotes e artes que me deixariam estonteado e de boca aberta.
Ingénuo principiante, sorri da prognose, mas pronto se me foi a arrogância e mais de uma vez sentiria descair os queixos, porque na cama ou nas esquinas, plateias de cinema, em vãos de porta, cais do Sena, bancos de jardim, indiferente à hora, ao lugar ou testemunhas, Felipa era bomba ninfomaníaca a explodir das mais variadas, mas todas deliciosas maneiras, usando o corpo com a paixão, a febre e a arte de um Paganini agarrado ao violino.
Num único detalhe era severa e
inflexível: o rasgão do hímen estava reservado para aquele que, virgen
purísima, a levasse ao altar. No mais valia tudo: o que custa imaginar, o
acrobaticamente penoso, refinamentos que Vénus lhe tinha ensinado, outros que
ela aperfeiçoara ou inventara. Tudo, sim, mas la penetración? Jamás!
Em razão de uma velha amizade, nesse maravilhoso tempo era eu hóspede de madame Gournay num esplêndido apartamento da Rue de Naples, edifício de opulência burguesa, dotado de um venerável ascensor hidráulico que excitava a minha doentia imaginação: redonda e espessa, inteiriça, saía das profundas uma coluna de aço que, tal um falo gigante, empurrava a geringonça até às alturas.
A entrada era elegante, espaçosa, havia um pátio florido, do lado direito ficava a loge de madame Marie Louise, la concierge, rechonchuda trintona de pele muito branca, cabelo muito loiro e permanente boa disposição, casada com monsieur Eugène, ele todo o avesso: seco de carnes, amargo, queixava-se de ir nos cinquenta, queixava-se do seu trabalho na EDF (para meu benefício soletrava Eléctricité de France), queixava-se dum ou doutro locatário e, sobretudo, do peso que era, por volta das seis da manhã, abastecer de carvão nos quartos de banho as enormes caldeiras do aquecimento central.
- Sabe quanto pesa cada saco? E às vezes levo dois!
Eu acenava que sim, fingindo compadecido, recordando a doçura das manhãs em que madame Marie Louise o substituía e, tendo enchido a caldeira, se esgueirava para o meu quarto, despia o roupão e caía nos meus braços, dando-me o consolo das friandises de Lille, que assim chamava ela às suas, também várias, artes de copular e satisfazer, homenageando de passagem a cidade natal.
É verdade inegável que o Diabo as tece, e com tão subtil engenho que nos aponta a ratoeira, mas no momento em que ao descobri-la a queremos evitar, já ela nos apanhou, nada adiantam protestos ou remorso. Quiseste? Pagas.
Sonhava eu com o ensaio de uma ou outra cena dos romances de Pierre Louÿs, ou de um episódio de Juliette, de Sade, e querendo realizar o sonho esperei a boa conjunção, não dos astros, mas de uma ausência prolongada da minha senhoria, a disponibilidade de Marie Louise, e que o horário mantivesse monsieur Eugène nas oficinas da EDF. À Felipa bastaria acenar, porque mesmo ocupada noutra cama, sabia-o eu por desagradável experiência, cheirando-lhe a novidade largava tudo.
Assim aconteceu, durou o festim a tarde inteira de um sábado de Junho, e se alguma coisa se copiou dos clássicos franceses do deboche, o nosso entusiasmo tinha-lhe emprestado aparências de originalidade.
Foi melancólica a despedida, eu babado em demasia com os carinhosos adeuses que ambas se faziam, para me aperceber das caretas do Demo, a zombar da minha ignorância das mulheres e das coisas do mundo. Porque a partir desse dia Marie Louise foi espaçando as matinas, até que para desconsolo meu e sem adeuses as terminou; e Felipa sumiu, embora numa ou noutra ocasião me parecesse reconhecê-la na vizinhança, o que era de estranhar, pois o seu habitat era a longínqua Rive Gauche.
Sofri um período de luto e quase abstinência, encontrando alguma, mas fraca compensação, nas raparigas que, vestidas de túnicas, formavam um coro da Grécia antiga num documentário de Ado Kyrou (1923-1985), no qual eu figurava de hoplita, com elmo, couraça, escudo e lança na mão, envergonhado com o saiote, sofrendo as grevas que me apertavam as pernas, tendo ainda, entre as filmagens, de sofrer longos discursos do realizador e amigo sobre temas que o fascinavam, e de que viria a tratar num livro intitulado Amour - érotisme et cinema.
Porque se apiedasse de me ver macambúzio, talvez com remorso de tão impiedosamente ter deixado de me aquecer a cama, ou ainda pelo agrado de que a minha inexperiência lhe proporcionasse uma forma de estrelato, Marie Louise retomou as visitas, parecendo que agora o fazia menos pelo gozo que delas tirava e me dava, do que para satisfazer uma inata veia pedagógica, ou por razões que me escapavam.
Foi assim que numa manhã de fraco recreio, já em pé ao lado da cama, embrulhando-se no roupão com vagares de odalisca, anunciou sem muitos detalhes que do que eu precisava era ir de visita à Rue d'Anvers.
Pouco mais disse, mas mau grado a curiosidade eu tinha de fazer pela vida, suando dias e às vezes noites numa cabine a legendar filmes.
Demorou a que me aventurasse, até que uma tarde de sábado me pus a caminho, rememorando o que Marie Louise explicara: não era bem uma livraria, como estava na tabuleta, antes uma espécie de loja de livros antigos, e de um lado havia um retroseiro, no outro vendiam pássaros e gaiolas.
Lá chegado demorei a descobrir a Rue d'Anvers (*), andei às voltas pelo Square d'Anvers, sem contudo estranhar, mais vezes tinha notado que Marie Louise mostrava pouco interesse por detalhes e era avessa a explicações, certa de que as coisas sempre se arranjavam, a bonomia do seu sorriso bastando para desculpa.
Espreitei a loja dos pássaros e das gaiolas, confirmou-se o retrosaria, e de facto assim era, flanqueavam a curiosa montra que tinha algo de um proscénio: orlada de veludo escuro, deixava apenas o espaço onde, sobre uma peanha, ladeado por um grosso círio de igreja, se via aberto o que parecia um incunábulo, com iluminuras que a distância não permitia distinguir.
Respirei fundo, três vezes premi a campainha, mas demoravam tanto a atender que, mal humorado, me ia retirar, quando a porta se abriu e de surpresa involuntariamente espequei, custando-me a recuperar a fala para reagir ao seco "Vous desirez? pronunciado por uma mulher de meia idade, sobriamente elegante, vestida de preto, que pela postura e a diferença dos degraus parecia olhar-me de muito alto e a modos de intimidar.
Tartamudeei que vinha da parte de Marie Louise, e o que me parecera altivez mudou para um quase sorriso, ela dizendo que sim, sabia, o aceno da mão convidando-me a entrar.
Fechou-se a porta automaticamente, acenderam-se luzes, a senhora apontou uma cadeira, sentou-se ela numa poltrona , eu a olhar em volta, reparando que me encontrava no que parecia uma loja de alfarrabista, quiçá arrumada demais para esse género de comércio.
Iniciou a madame um interrogatório sem preliminares, pedindo les papiers, assegurando-se que a minha cara era a do passaporte, querendo saber como se pronunciava o nome, onde morava, o que fazia na vida, se tirante Marie Louise poderia nomear alguém como referência.
Achei melhor fazer de desprotegido, respondi que não, chegara havia pouco, mas Marie Louise confirmaria a morada e as minhas boas intenções.
Pareceu-me que se divertia com ver-me gaguejar, e terminou dizendo que voltasse, marcou-me o dia e a hora, falaríamos mais de espaço, e então explicaria o que necessitasse de ser explicado.
Às gargalhadas, mas sem detalhes nem explicação, Marie Louise tinha afirmado "Ça va te faire un trou!", sugerindo que uma visita à Rue d'Anvers abriria um rombo na minha mais que modesta carteira.
Valeria a pena? Fingia pôr-me seriamente a pergunta, dar-me ares de sensatez, mas por dentro tudo eram tremuras de febre, desejo, urgência de descobrir, o frenesim aumentando à medida que recontava as notas, sem auspício de que se repetisse nos meus poucos francos o milagre da multiplicação dos pães.
Estou de novo sentado na mesma cadeira, e madame Françoise, o nome que disse ao apertar-me a mão, ainda veste de preto, mas la petite robe noire foi trocada pelo que tem alguma semelhança com um uniforme militar, preto também, perfeito no corte, de um cabedal que mesmo sem tocar se lhe adivinha a macieza e a qualidade.
Faço o que posso para esconder o que me vai na cabeça, quero fingir de atilado, porém, mesmo espaçadamente servidas, as suas palavras desatinam-me. Baixo involuntariamente os olhos, sofro com a minha parolice, tenho o sentimento de que, com gentileza e suave ironia, recostada na poltrona como para aumentar a distância que nos separa, madame Françoise me vê mais nu do que quando vim ao mundo.
A primeira paulada foi a da franqueza: desculpasse, mas compreendesse, eu nada tinha a procurar ali, nem era lugar que me conviesse. Aceitara receber-me por favor a Marie Louise, que conhecia há muito e lhe merecia enorme considération por razões com que eu não tinha a ver. Fez ainda uma ou outra observação sobre a juventude, o risco que corria aquele que, apressado, falto de preparo, sem os meios nem as qualidades precisas, queria frequentar certos ambientes.
Atordoado, engolindo em seco, pois longe estava de esperar o sermão, tive bom senso, travei os comentários patetas. E como ela se erguia, dizendo que teríamos de nos despachar porque aguardava visitas, levantei-me também, fiz de conta estar habituado a ver uma enorme estante girar silenciosamente, dando acesso a uma escada.
Subiu ela ligeira, eu inseguro, fitando os degraus, desconhecendo se me impedia de olhar por receio, ou suponha esconder assim o meu embaraço. Um patamar deu-me ideia de que entrávamos noutro prédio, e madame Françoise, sem uma palavra, ia abrindo e fechando portas, mal me dando tempo a reter o que havia por ali: azorragues, cavaletes, uma mesa de cirurgia, cordas e peças de ferro de estranha forma, máscaras de veludo, de madeira, de metal, uma parede toda de espelho como nas escolas de dança, grilhetas, uma forca, algemas, uma cruz de madeira negra, um inesperado e luxuoso quarto de banho.
Pondo os dedos nos lábios, fez-me sinal que entrasse num cubículo que pouco mais era que um armário, indicou o que se assemelhava a um periscópio, e saiu encostando silenciosamente a porta.
A saleta devia ser insonorizada, porque embora a mulher parecesse gritar e agitar-se nada se ouvia, do mesmo modo que uma ou outra palavra do homem se adivinhava apenas pelo mexer dos lábios.
Nua, estendida no que parecia uma maca excepcionalmente larga, era mulher de forte postura, pernas musculadas como de bailarina, seios firmes. Por estar de pés voltados para mim via-lhe mal o rosto, mas distinguia os pulsos e os tornozelos presos à maca por correias de cabedal.
De pernas abertas ao que me pareceu o limite possível, tinha espetadas na vulva, nas coxas e no ventre umas quantas agulhas longas e finíssimas, em que o homem, um sexagenário de barba grisalha, bata branca e estetoscópio ao pescoço, por vezes mexia com uma mão, enquanto com o polegar da outra pressionava aqui e ali, ora nas virilhas, ora na sola dos pés, numa carótida, na outra, às vezes parecendo desenhar com a unha.
O corpo contorcia-se em espasmos, o homem voltou-se, sorrindo a alguém cuja sombra começava a desenhar-se no soalho, nesse mesmo momento a imagem desapareceu no "periscópio", a porta do cubículo abriu-se, e madame Françoise, acenando que me despachasse, levou-me por um corredor muito estreito, descemos outra escadaria e, juntando um irónico Au revoir! ao aperto de mão, saiu da minha vida.
Desnorteado, sonâmbulo, mal dando pelo burburinho do boulevard ou em que direcção caminhava, tomou-me o sentimento melancólico de que deveria aceitar a minha ignorância e, com remorso, envergonhar-me de por ter lido muito, julgar que muito compreendia, que seriam escassas as ocasiões de novidade.
Magoava-me, sobretudo, a consciência do engano parvo de, por estar em Paris e inesperadamente viver o que para outros seriam aventuras banais, supor que tinha chegado aonde queria, julgar-me arrivé.
Esperei, desesperei, as mais das vezes ao entrar ou sair do prédio dava com o "Je reviens!" na porta da loge, ou uma Marie Louise apressada, a piscadela de olho a dizer que me tinha no pensamento.
E de facto uma manhã surpreendeu-me com a visita, curiosa de ouvir, mas sentada na borda da cama, dando a entender que não haveria friandises.
- Racconte!
Contei a secura de madame Françoise, o pouco que tinha visto, cauteloso em guardar para mim os sentimentos com que de lá saíra, mas o interesse de Marie Louise parecia distante, só se entusiasmou quando falei da mulher com as agulhas.
- Ah! Radko! É médico. Veio da Bulgária. Usa uma técnica de acupunctura para estimular orgasmos e dizem que foi ele que a descobriu. Faz rios de dinheiro.
De momento, porém, só Marie Louise me interessava, queria ouvir mais, tudo, não ia deixar que escapasse sem satisfazer a minha curiosidade e, segurando-lhe o pulso, que ela era ligeira, imprevisível, tomei ares de Maigret:
- Mas tu?
Em vez de responder deitou-se ao meu lado, toda carícias e doçura, beijinhos, fintas, talvez descrente de que eu pudesse ser tão teimoso, levasse a sério o interrogatório e a incarnação do comissário.
A Marie Louise de olhar doce, carne macia, pele muito branca, cabelo muito loiro, uma festa na cama, era a que eu conhecia. Mas havia a concierge prestimosa e cordial; a dedicada esposa de monsieur Eugène; a cozinheira com fama no prédio; a rapariga que gostava de ópera e com uma bela voz de soprano acompanhava as árias do rádio; a filha dedicada que ao mais pequeno alarme corria a visitar os pais em Lille.
De certeza havia outras, mas finalmente, arrastando, chegámos à que eu estava longe de imaginar: a Maria Louise maîtresse no estabelecimento da Rue d'Anvers. E que maîtresse. Muito procurada pela competência em dominar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especialista de arriscadas técnicas do afogamento, orgulhosa de assim provocar ejaculações e orgasmos que faziam concorrência aos de Radko.
Sorriu ao dar conta do passo em falso, aceitando que de verdade, tal como o búlgaro, a respeito de paga não tinha razões de queixa, fora ser madame Françoise, além de sua amante, patronne de invulgar generosidade.
A meio da confidência já eu esquecera o papel de investigador, esforçando-me por disfarçar o desnorte e, tanto quanto era capaz, conseguir uma expressão que não traísse em demasia o embaraço que me causava a ignorância – teria de procurar "acupuncture", "empaler", "ondinisme", no Petit Larousse – nem quanto me doeria se Marie Louise se arrependesse de me ter tomado para seu fugaz brinquedo.
Mas o destino ata e desata os laços com que julgamos poder prender os outros. Estava nos astros que ao despedir-se sem mais palavras, apenas um sorriso e um beijo, Marie Louise me deixaria ali com a parecença de um aprendiz de boxeur que, inexperiente peso pluma, se atreve a subir ao ringue, leva um directo e fica KO.
A sequência foi corriqueira: porque o aluguer aumentava e os ganhos ameaçavam diminuir, vi-me obrigado a procurar outro alojamento, o que no Paris do tempo se assemelhava a querer descobrir a clássic agulha num palheiro.
Incrível e feliz acaso, ainda por cima como que ao preço da chuva, fui encontrá-lo na Rue de Vaugirard.
Pobre de mim, que já tinha assinado o contrato – e por um ano - quando dei conta das razões da pechincha: ficava paredes meias com o gigantesco matadouro de Vaugirard, onde diariamente se abatiam centenas de cavalos.
Os pobres animais, pressentindo a morte, relinchavam noite e dia um soturno augúrio.(**)
E eu, torturado pela insónia, pelas recordações de Marie Louise e da Rue d'Anvers, perguntava-me se estaria condenado aos sonhos da ingenuidade, ou se havia esperança de que um dia algo compreendesse das conjunções do prazer com o perigo, o pecado e a paixão.
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(*) A Rue d'Anvers desapareceu nos anos 70,
anexada pela ampliação do Square d'Anvers
(**) Esse famoso e sinistro estabelecimento encerraria definitivamente em 1978. O espaço é agora ocupado pelo parque Georges Brassens.